DIREITO E PASTORAL

PROCESSOS NO TRIBUNAL DO ESTADO DO VATICANO

 

 

 

Miguel Falcão

 

 

Decorre no Tribunal Civil da Cidade do Vaticano um processo penal por acusações graves de desvios fraudulentos de fundos económicos da Santa Sé contra algumas pessoas que trabalhavam na Secretaria de Estado do Vaticano, processo iniciado em final de Julho de 2021.

Depois de ouvidos os arguidos, as testemunhas e os peritos, a partir de 18 de Julho passado começaram as acusações do Promotor de Justiça, defensor dos interesses da Santa Sé, o Professor de Direito da Universidade de Calábria Alessandro Diddi, que precisou “não se tratar de um processo contra a Secretaria de Estado, mas contra alguns funcionários, ou melhor, 'servidores' que não souberam interpretar o espírito e os ideais da Igreja aos quais deveriam aderir no desempenho de sua profissão".

Terminadas as intervenções do Promotor de Justiça em 26 de Julho, depois do Verão terão lugar as declarações dos advogados de defesa dos arguidos, para o processo terminar com a sentença do Tribunal presidido pelo Procurador jubilado de Itália Giuseppe Pignatone.

 

O Discurso do Papa Francisco

Neste ambiente ainda confuso situa-se o discurso do Papa Francisco na inauguração do Ano judicial do Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano, no passado dia 25 de Fevereiro de 2023 *.

Reconhecendo que “a administração da justiça, ao longo do último ano, foi particularmente complexa”, o Papa salienta a importância do compromisso pela justiça:

“O compromisso pela paz implica e exige um compromisso pela justiça. Paz sem justiça não é paz verdadeira, não tem fundamentos sólidos e nenhuma possibilidade de futuro. E a justiça não é uma abstração nem uma utopia. Na Bíblia, ela é o cumprimento honesto e fiel de todos os deveres em relação a Deus, é fazer a Sua vontade. Não constitui apenas o fruto de um conjunto de regras a aplicar com perícia técnica, mas é a virtude pela qual damos a cada um o que lhe cabe, indispensável para o correto funcionamento de cada âmbito da vida comum e a fim de que cada um possa levar uma vida serena. Uma virtude a cultivar mediante o compromisso de conversão pessoal e a exercer com as outras virtudes cardeais da prudência, fortaleza e temperança.

“Nesta ótica trabalham os Tribunais do Estado da Cidade do Vaticano, que desempenham um papel precioso em benefício da Santa Sé quando se trata de dirimir disputas de natureza civil ou penal. São controvérsias que, pela própria natureza, estão fora do âmbito da competência dos Tribunais da Santa Sé e dos tribunais eclesiásticos, e devem ser julgadas com base numa complexa trama de fontes canónicas e civis, como é previsto pelo ordenamento do Vaticano, cuja aplicação requer competências específicas”.

E referindo-se ao momento crítico presente, comenta:

“Nos últimos anos, estas controvérsias jurídicas e os relativos processos aumentaram, assim como aumentou, em não poucos casos, a gravidade das condutas que vêm à tona, especialmente no âmbito da gestão patrimonial e financeira: (…) o problema não são os processos, mas os factos e os comportamentos que os determinam, tornando-os dolorosamente necessários. Com efeito, tais comportamentos por parte de membros da Igreja prejudicam gravemente a sua eficácia de refletir a luz divina”.

Termina o Papa com um convite a conjugar justiça com misericórdia na decisão judicial:

“Com esta atitude de misericórdia e de proximidade somos chamados a olhar para os nossos irmãos e irmãs, especialmente quando estão em dificuldade, quando cometem erros, quando são submetidos à provação do julgamento. Uma provação que às vezes é necessária, quando se trata de averiguar condutas que ofuscam o rosto da Igreja e suscitam escândalo na comunidade dos fiéis. Para esta finalidade é útil o exercício de um discernimento rigoroso, que «impede o desenvolvimento de uma moral fria de escrivaninha no tratamento dos temas mais delicados» (Exort. Ap. pós-sinodal Amoris laetitia, 312); bem como o recurso prudente ao cânone da equidade, que pode favorecer a busca do equilíbrio necessário entre justiça e misericórdia. Misericórdia e justiça não são alternativas, mas caminham juntas, procedendo em equilíbrio para o mesmo fim, pois a misericórdia não é a suspensão da justiça, mas o seu cumprimento (cf. Rom 13, 8-10)”.

 

No processo referido no início deste artigo, os juízes vão ter em conta o que estabelece a Lei Fundamental do Estado da Cidade do Vaticano, promulgada pelo Papa em 13-V-2023: “Ao aplicar a lei, o juiz deve inspirar.se no princípio da equidade, trabalhar para a restauração da justiça e favorecer a conciliação entre as partes. Além disso, nas causas penais, o juiz impõe a pena com vistas à reabilitação do infrator, à sua reinserção e à restauração da ordem jurídica violada. Em todo o processo deve-se garantir a imparcialidade do juiz, o direito de defesa e o contraditório entre as partes” (art. 21).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



* O Tribunal do Estado da Cidade do Vaticano foi instituído por Pio XI em 7 de Junho de 1929 – na sequência do Pacto de Latrão entre o Reino de Itália e a Santa Sé, firmado em 11-II-1929 –, tendo o seu ordenamento sofrido várias alterações para ir adaptando-se às necessidades dos tempos, em particular no pontificado do Papa Francisco.


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