DIREITO E PASTORAL

NOVO TRAVÃO À LEGALIZAÇÃO DA EUTANÁSIA II

 

Miguel Falcão

 

 

 (continuação)

Embora seja já conhecido o triste desfecho deste processo legislativo – com a promulgação forçada do Presidente da República em 16-V-2023 do novo texto da Assembleia da República, desestimando outro veto político do PR –, pareceu-nos oportuno terminar o capítulo iniciado sob o título deste artigo.

    

O debate na especialidade sobre o texto final

Os projectos de lei aprovados em 9-VI-2022 baixaram imediatamente à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias [1].

 Em 15-VI-2022, foi constituído um Grupo de Trabalho para preparar a discussão e votação na especialidade, que se reuniu nos dias 30 de Junho, 7, 15 e 21 de Julho, 15, 22 e 29 de Setembro e 6 de Outubro, tendo realizado audições e concedido audiências, bem como recolhido os contributos escritos de várias entidades civis e religiosas.

É interessante conhecer as razões da clara oposição à eutanásia e à morte medicamente assistida de duas dessas entidades patrocinadas pelo Estado: o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida [2] e a Ordem dos Médicos [3].

Os Grupos Parlamentares do PS, da IL e do BE, bem como o PAN, apresentaram uma proposta de substituição integral das suas iniciativas, sob a forma de texto único, que foi discutido em 13 de Outubro e, votado na especialidade na reunião da Comissão de 30-XI-2022, foi aprovado com os votos a favor do PS, da IL e do BE, contra do CH e do PCP e a abstenção do PSD, e enviado ao Presidente da Assembleia da República.

O agendamento da votação final do texto ficou marcado e realizou-se em 9 de Dezembro de 2022 [4].

Na votação final global, o texto final que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal, foi aprovado por 103 votos do PS, 8 da IL, 6 do PSD, 5 do BE, 1 do PAN e 1 do Livre; votaram contra 58 do PSD, 12 do Chega, 6 do PCP e 6 do PS; abstiveram-se 3 do PSD e 1 do PS. Presentes 210 deputados. Em resumo, foi aprovado por 124 votos (59%), contra 82 e 4 abstenções. 

 

A intervenção do Presidente da República e do Tribunal Constitucional

Recebido na Presidência da República no dia 4-I-2023 o texto final que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código penal, aprovado pela Assembleia da República para ser promulgado como lei, no mesmo dia o Presidente da República enviou ao Tribunal Constitucional para requerer a apreciação da conformidade com a Constituição, indicando alguns fundamentos [5].

Em 30-I-2023, o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre a inconstitucionalidade do texto aprovado pela Assembleia da República, por maioria de 7 votos contra 6.

No seu Comunicado, afirma:

“O Plenário do Tribunal Constitucional decidiu hoje, por maioria, pronunciar-se pela inconstitucionalidade de algumas das normas do Decreto n.º 23/XV da Assembleia da República, cuja fiscalização o Presidente da República lhe havia solicitado.

“Na sequência da pronúncia pela inconstitucionalidade constante do Acórdão n.º 123/2021, a Assembleia da República aprovou uma nova versão da lei relativa à morte medicamente assistida não punível. A expectativa do Tribunal era a de que nela tivessem sido introduzidas as modificações insinuadas naquele aresto.

“Comprovou o Tribunal que o legislador, tendo embora desenvolvido esforços no sentido da densificação e clarificação de alguns conceitos utilizados na versão anteriormente fiscalizada, optou por ir mais além, alterando em aspetos essenciais o projeto anterior. Ao fazê-lo, a Assembleia da República limitou-se a exercer as competências que a Constituição lhe atribui. Todavia, tal opção teve consequências, pois implicou que o Tribunal, chamado a pronunciar-se e aplicando a Lei Fundamental, houvesse de proceder a uma nova fiscalização, incidindo sobre as normas alteradas que foram objeto do pedido do Presidente da República.

“Ao proceder a tal fiscalização, o Tribunal concluiu que, tendo o legislador decidido caracterizar a tipologia de sofrimento através da enumeração de três características («físico, psicológico e espiritual») ligados pela conjunção “e”, são plausíveis e sustentáveis duas interpretações antagónicas deste pressuposto. Assim fazendo, o legislador fez nascer a dúvida, que lhe cabe clarificar, sobre se a exigência é cumulativa (sofrimento físico, mais sofrimento psicológico, mais sofrimento espiritual) ou alternativa (tanto o sofrimento físico, como o psicológico, como o espiritual).

“Ou seja: o segmento em análise (“sofrimento físico, psicológico e espiritual”) consente que dele se extraiam legitimamente alternativas interpretativas possíveis e plausíveis que conduzem a resultados práticos antagónicos: i) reservar o acesso à morte medicamente assistida apenas a pessoas que, em virtude de lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, relatem um sofrimento de grande intensidade que corresponda cumulativamente às tipologias de sofrimento físico, psicológico e espiritual; ou ii) garantir o acesso à morte medicamente assistida a todas as pessoas que, em consequência de uma das mencionadas situações clínicas, sofram intensamente, seja qual for a tipologia do sofrimento. Em termos práticos, e a título meramente exemplificativo, está em causa saber se um doente a quem tenha sido diagnosticado um cancro com um prognóstico de esperança de vida muito limitada, ou um doente que padeça de esclerose lateral amiotrófica que não tenham sofrimento físico (vulgarmente entendido como dor) têm ou não acesso à morte medicamente assistida não punível.

“Em suma, foi criada, desta forma, uma intolerável indefinição quanto ao exato âmbito de aplicação da nova lei. Recorde-se que considerou o Tribunal que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias e que as condições em que é legalmente admissível a morte medicamente assistida têm de ser «claras, antecipáveis e controláveis» (Acórdão n.º 123/2021), cabendo ao legislador defini-las de modo seguro para todos os intervenientes” [6].

Consequentemente, o Presidente da República devolveu o texto sem promulgação à Assembleia da República [7].

Restava ver o que faria a Assembleia da República [8].

 

 

 

 



[1] Cf. Assembleia da República, Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, Exposição do Presidente da Comissão, Fernando Negrão, 30-I-2023: Texto Final e relatório da discussão e votação na especialidade dos Projetos de Lei.

[2] Entre todas as entidades ouvidas, o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) é um órgão consultivo independente, a funcionar junto da Assembleia da República, que tem por missão analisar os problemas éticos suscitados pelos progressos científicos nos domínios da biologia, da medicina ou da saúde em geral e das ciências da vida. Por isso, tem-se pronunciado várias vezes a respeito dos projectos de lei da eutanásia.

Nesta ocasião, entregou o Parecer de 9-VI-2022 a respeito dos projectos de lei do BE, PS e PAN, onde todos prescindiram da exigência de a doença ser fatal, substituindo por “doença grave e incurável” (BE e PS) / “doença grave ou incurável” (PAN). Analisa depois o conceito de sofrimento, o respeito pela autonomia do doente, o acesso a cuidados paliativos e a composição da Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos. É este o teor do Parecer acerca desses projectos de lei:

– alargam sem qualquer fundamento o âmbito da morte medicamente assistida através da mera exigência de doença grave e incurável, ou mesmo apenas grave ou incurável, não respeitando o princípio da proporcionalidade;

– desconsideram o fundamento ético em que assenta a limitação do médico como destinatário do pedido, ao não exigir que o médico orientador seja um médico da confiança do doente;

– não valorizam adequadamente a disponibilidade de acompanhamento psicológico nos processos de tomada de decisão em situações de intenso sofrimento;

– não respeitam o princípio da igualdade entre doentes que pedem a morte medicamente assistida e os doentes que não a pedem, devendo o acesso a cuidados paliativos ser garantido a todos os cidadãos que deles necessitem.

Cf. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Parecer 116/CNECV/2022.

[3] Segundo o novo Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pela Lei n.º 117/2015 de 31 de agosto, a Ordem dos Médicos é a associação pública profissional representativa dos que, em conformidade com os preceitos do presente Estatuto e as disposições legais aplicáveis, exercem a profissão de médico (art. 1.º, 1).

No Parecer de 19-XII-2019, recorda que o Código Deontológico da Ordem dos Médicos de 2016 estabelece no art. 65º: “O médico deve respeitar a dignidade do doente no momento do fim da vida. Ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, â eutanásia e â distanásia”. No art. 66º definem-se os cuidados paliativos: “Nas situações de doenças avançadas e progressivas cujos tratamentos não permitem reverter a sua evolução natural, o médico deve dirigir a sua acção para o bem-estar dos doentes, evitando a futilidade terapêutica, designadamente a utilização de meios de diagnóstico e terapêutica que podem, por si próprios induzir mais sofrimento, sem que daí advenha qualquer benefício. Os cuidados paliativos, com o objectivo de minimizar o sofrimento e melhorar, tanto quanto possível, a qualidade de vida dos doentes, constituem o padrão do tratamento nas situações a que o número anterior se refere”.

Daí conclui o Parecer: “Se nos cingirmos ao que está disposto no Código Deontológico, a Eutanásia e o Suicídio Assistido estão claramente fora da medicina portuguesa, não são nem podem ser atos médicos. Mas sempre se poderia argumentar que o Código pode ser alterado e que uma lei votada na Assembleia da República se sobrepõe às disposições da deontologia médica consagrada no cânone. Assim poderia ser, se se sobrepusesse sempre o legal ao ético e ao moral, se o legal legitimasse práticas contra o código de ética e deontológico duma nobre profissão. A ética está antes e acima da lei, deontologia e norma jurídica não são a mesma coisa, e a deontologia não tem que se submeter à norma jurídica embora tenha que a (re)conhecer, o que justifica a objecção de consciência. Na presente situação pode-se afirmar que é um procedimento que lesa os princípios de uma classe profissional da máxima importância para a saúde e bem-estar da população, pois é o veículo determinante da ciência médica, na teoria e na prática, em todas as fases da vida, até ao fim”.

É imediato lembrarmo-nos dos regimes absolutos em que o poder impõe a sua vontade aos cidadãos e às instituições livres da sociedade. 

[4] Cf. Diário da Assembleia da República, 10-XII-2022, I Série – Número 64: Reunião plenária de 9 de dezembro de 2022.

[5] “A certeza e a segurança jurídica são essenciais no domínio central dos direitos, liberdades e garantias.

“Tendo presente que, em 2021, o Tribunal Constitucional formulou, de modo muito expressivo, exigências ao apreciar o diploma sobre morte medicamente assistida – que considerou inconstitucional – e que o texto desse diploma foi substancialmente alterado pela Assembleia da República, o Presidente da República requereu a fiscalização preventiva do Decreto n.º 23/XV, acabado de receber, para assegurar que ele corresponde às exigências formuladas em 2021.

“Por outro lado, de acordo com a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, parece não avultar, no regime substantivo do diploma, um interesse específico ou diferença particular das Regiões Autónomas.

“Não obstante, quanto ao acesso dos cidadãos aos serviços públicos de Saúde, para a efetiva aplicação desse regime substantivo, o diploma só se refere a estruturas competentes exclusivamente no território do Continente (Serviço Nacional de Saúde, Inspeção-Geral das Atividades de Saúde, Direção-Geral de Saúde), em que não cabem as Regiões Autónomas. O que significa que diploma complementar, que venha a referir-se aos Serviços Regionais de Saúde, que são autónomos, deverá, obviamente, envolver na sua elaboração os competentes órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira” (Nota da Presidência da República, de 4-I-2023)

[6] Tribunal Constitucional, Comunicado – Acórdão n.º 5/2023.

[7] “Tendo-se o Tribunal Constitucional pronunciado hoje pela inconstitucionalidade de preceitos da nova versão do decreto da Assembleia da República sobre a morte medicamente assistida, o Presidente da República vai devolver, de novo, o diploma à Assembleia da República, sem promulgação, nos termos do art.º 279.º, número 1, da Constituição, logo que publicado, no Diário da República, o Acórdão daquele Tribunal” (Nota da Presidência da República, de 30-I-2023).

[8] A AR aprovou pela quarta vez um novo Decreto em 12-IV-2023, em que deixava de falar de “sofrimento físico, psicológico e espiritual” e acrescentava que a eutanásia só se aplica quando não é possível o suicídio assistido. Enviado ao PR, este pediu esclarecimentos, mediante um veto político, que a AR desestimou, voltando a aprovar o mesmo texto em 12-V-2023 por maioria de 129 votos a favor (61%), 81 votos contra e uma abstenção. Cumprindo o estabelecido no artigo 136.º, n.º 2 da Constituição, o PR submeteu-se e promulgou a lei da eutanásia em 16-V-2023.


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