DIREITO E PASTORAL

PAPA FRANCISCO:

REFLEXÕES SOBRE O MATRIMÓNIO NA ACTUALIDADE

 

 

 

 

 

Miguel Falcão

 

 

No último discurso aos membros do Tribunal da Rota Romana [1], o Papa Francisco quis “partilhar algumas reflexões sobre o matrimónio”, porque nota que “na Igreja e no mundo há uma grande necessidade de redescobrir o significado e o valor da união conjugal entre homem e mulher, fundamento da família”.

Parece que esta observação deriva de dois factos: primeiro, cresce cada vez mais o número de casais que se separam; depois, diminui cada vez mais o número de pessoas que se unem em matrimónio.

Esta constatação, como o Papa faz notar, refere-se quer na vida dos fiéis da Igreja, quer no mundo, isto é, nas outras pessoas da sociedade.

Por isso, é missão da Igreja começar por ajudar os seus fiéis católicos, quer recordando a doutrina salvadora, quer ajudando-os a seguirem-na: isto é, a boa doutrina e a boa pastoral. Depois, será missão dos fiéis propagarem a boa doutrina e a boa prática ao seu redor. 

Parece-nos que a grande dificuldade está no ambiente actual, o mundanismo, que influi fortemente realçando a satisfação própria e a completa autonomia da vontade, e rejeitando o dever dos compromissos que se tomam, esquecendo que o matrimónio não é uma situação que se escolha individualmente para cada um desfrutar à sua maneira, mas um compromisso indelével entre homem e mulher para viverem um para o outro, preparando o fruto que são os filhos.

 

O Papa recorda as palavras de Jesus ao afirmar a união indissolúvel no matrimónio: “Não lestes que, no princípio, o Criador os fez homem e mulher e disse: Por isso, o homem deixará o pai e a mãe e unir-se-á à sua mulher e os dois serão uma só carne? Portanto, já não são dois, mas uma só carne. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu” (Mt 19, 4-6).

E acrescenta o comentário de S. João Paulo II, que sublinha a indissolubilidade como manifestação da redenção: “Cristo renova o desígnio primitivo que o Criador inscreveu no coração do homem e da mulher; e, na celebração do sacramento do matrimónio, oferece um «coração novo»: assim, os cônjuges não só podem superar a «dureza do coração» (Mt 19, 8), mas também e sobretudo podem partilhar o amor pleno e definitivo de Cristo, nova e eterna Aliança feita carne” [2].

Na verdade, afirma o Papa, o matrimónio não é uma “mera forma de gratificação afectiva que se pode constituir de qualquer maneira e modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada um” [3].

A questão que se põe é: “Como é possível haver uma união tão comprometida entre um homem e uma mulher, fiel e para sempre, da qual nasce uma nova família, dados os limites e fragilidades do ser humano?”.

A resposta do Papa é a que dá Jesus: “É Deus que une o marido e a mulher no matrimónio” (cf. Mt 19, 6). Deus está presente na união matrimonial com a sua própria vida, a graça – desde que não oponham resistência –, dando a força para viverem os fins do matrimónio. “O Salvador dos homens e Esposo da Igreja vem ao encontro dos cônjuges cristãos através do sacramento do matrimónio” [4].

“Tudo isto nos leva a reconhecer que todo o matrimónio, também o não sacramental, é um dom de Deus aos cônjuges! (…) O homem e a mulher são chamados a acolher este dom e a corresponderem livremente com o dom recíproco entre si”.

Chama a atenção esta conclusão que o Papa tira: quer o matrimónio sacramental (entre dois baptizados) quer o matrimónio natural (entre dois não baptizados) são um dom de Deus! Está na mão dos cônjuges corresponderem a esse dom e ajuda divinos, para que a união seja feliz. Os cristãos têm a mais a ajuda proporcionada pela graça do sacramento, que aperfeiçoa a correspondência natural.

 

Reconhece o Papa que “a indissolubilidade vem frequentemente concebida como um ideal e tende a prevalecer a mentalidade segundo a qual o matrimónio dura enquanto há amor”. Mas de que amor se trata? “Frequentemente, esse amor reduz-se ao plano sentimental ou a meras satisfações egoístas”. Pelo contrário, o Papa afirma que o amor matrimonial inseparável do matrimónio é um amor devido, porque Cristo disse: “Dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 13, 34). Este amor é dom de Deus, “é o próprio Cristo que sustenta os cônjuges com a sua graça”.

Vê-se que o Papa está a dirigir-se aos baptizados. E acrescenta que esse amor “é um dom confiado à liberdade dos cônjuges, com os seus limites e quedas; por isso, necessita continuamente de purificação e amadurecimento, de compreensão e perdão recíprocos”. O matrimónio não existe só quando não há problemas. “O desígnio de Deus realiza-se sempre de modo imperfeito, e contudo a presença do Senhor habita na família real e concreta, com todos os seus sofrimentos, lutas, alegrias e propósitos quotidianos. (…) A espiritualidade do amor familiar é feita de milhares de gestos reais, de gestos concretos. (…) Em suma, a espiritualidade matrimonial é uma espiritualidade do vínculo habitado pelo amor divino” [5].   

O Papa dá muita importância ao vínculo como realidade permanente no matrimónio. Reconhece que a palavra é olhada com suspeita, como se fosse uma imposição externa, um peso, algo oposto à autenticidade e liberdade do amor. “Pelo contrário, – diz – se o vínculo é compreendido como união de amor, então revela-se como o núcleo do matrimónio, dom divino que é fonte de verdadeira liberdade e guardião da vida matrimonial”. 

E recorda: “Tanto a pastoral pré-matrimonial como a matrimonial devem ser, antes de mais nada, uma pastoral do vínculo, na qual se ofereçam elementos que ajudem quer a amadurecer o amor quer a superar os momentos duros. Estas contribuições não são apenas convicções doutrinais, nem se podem reduzir aos preciosos recursos espirituais que a Igreja sempre oferece, mas devem ser também percursos práticos, conselhos bem encarnados, estratégias tomadas da experiência, orientações psicológicas” [6].

Conclui o Papa Francisco: O matrimónio é um bem, “um bem de extraordinário valor para todos: para os próprios cônjuges, para os seus filhos, para todas as famílias com quem se relacionam, para toda a Igreja, para toda a humanidade. É um bem difusivo, que atrai os jovens a responderem com alegria à vocação matrimonial, que conforta e reanima os esposos”.

“O matrimónio constitui a via mestra para a santidade dos próprios cônjuges, uma santidade vivida no dia-a-dia. É significativo que a Igreja esteja a propor hoje alguns casais como exemplos de santidade”.

O Papa termina referindo-se aos casais em crise. Necessitam de acompanhamento com amor e esperança, por parte dos pastores e de outros fiéis. E sugere que “renovem a consciência do dom recebido no sacramento do matrimónio, um dom irrevogável, uma fonte de graça, (…) que é parte essencial do caminho de reconciliação”.

 

Comentário

O discurso do Papa Francisco reflecte a sua grande preocupação pela pastoral do matrimónio, para que os cristãos se preparem convenientemente para o matrimónio e os casais cristãos sejam felizes.

Se o matrimónio é um dom de Deus querido desde o princípio para todos os homens e requer uma correspondência séria para serem felizes, os baptizados contam ainda com um sacramento devido à redenção de Cristo, que é uma ajuda poderosa para essa correspondência e felicidade, desde que os esposos estejam com as devidas disposições espirituais (sacramento frutuoso).

O Papa não se cansa de fazer ver que o matrimónio é um grande bem, isto é, algo que por si atrai os nubentes, como Santo Agostinho fazia ver que os elementos essenciais do matrimónio – abertura aos filhos, fidelidade e indissolubilidade – são os bens do matrimónio. Podíamos dizer que o matrimónio é caminho de felicidade.

Por isso, assim como a Igreja abençoa o matrimónio de uma pessoa cristã com outra não cristã, com mais razão deseja abençoar com uma pessoa cristã sem fé se realmente esta não recusa os elementos essenciais do matrimónio cristão; porque o matrimónio entre dois baptizados é sacramento e pelo menos a pessoa piedosa conta com a graça sacramental, o que pode ajudar eficazmente a um matrimónio feliz.

O outro motivo que tem sido causa de matrimónios infelizes e de afastar os jovens do matrimónio é a mudança que se deu na mulher com a difusão do feminismo. Ela deixou de ser a bóia de salvação do matrimónio e do esposo.

O feminismo difundiu a ideia de que a mulher deve ser em tudo como o homem, recusando a diferença e a complementaridade. Muito recentemente, o Papa Francisco recordava que “a igualdade deve ser alcançada na diversidade, não igualdade para que as mulheres adoptem o comportamento dos homens, masculino” (Prefácio para o livro de Anna Maria Tarantola, Mais liderança feminina para um mundo melhor: o cuidado como motor para a nossa Casa Comum, Editora Vita e Pensiero, Milano, Março 2023).

Com o feminismo exaltado, a mulher renegou as suas qualidades específicas – bondade, compreensão, espírito de sacrifício –, atraída pelas realizações vistosas dos homens e imitando por isso o que não passam de defeitos – egoísmo, racionalismo, imposição da vontade.

Se antes a mulher suavizava estes defeitos do marido, agora tornaram-se dois indivíduos rivais, levando facilmente à separação. Daí também a retracção que os jovens sentem para o compromisso matrimonial. E não digamos do caso de um jovem desejar casar-se com uma rapariga graciosa e descobrir que se trata de um travesti [7].    

 

M. F.

   

 



[1] Discurso aos membros do Tribunal da Rota Romana na inauguração do Ano Judicial, em 27 de Janeiro de 2023.

[2] JOÃO PAULO II, Exort. apost. Familiaris consortio, 22-XI-1981, n. 20.

[3] Cf. FRANCISCO, Exort. apost. Evangelii gaudium, 24-XI-2013, n. 66.

É esclarecedor recordar toda a passagem referida: “O matrimónio tende a ser visto como mera forma de gratificação afectiva, que se pode constituir de qualquer maneira e modificar-se de acordo com a sensibilidade de cada um. Mas a contribuição indispensável do matrimónio à sociedade supera o nível da afectividade e o das necessidades ocasionais do casal. Como ensinam os Bispos franceses, não provém «do sentimento amoroso, efémero por definição, mas da profundidade do compromisso assumido pelos esposos que aceitam entrar numa união de vida total» (Nota Élargir le mariage aux personnes de même sexe? Ouvrons le débat!, 28-IX-2012).

[4] VATICANO II, Const. pastoral Gaudium et spes, n. 48.

[5] FRANCISCO, Exort. apost. Amoris laetitia, 19-III-2016, n. 315.

[6] FRANCISCO, Exort. apost. Amoris laetitia, 19-III-2016, n. 211.

[7] Cf. MIGUEL FALCÃO, Feminismo e ideologia do género, in Celebração Litúrgica, 2020-2021, 1, pp. 258-262; 2, pp. 544-548; 3, pp. 765-770.

 


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