DIREITO E PASTORAL

A SINODALIDADE

NOS PROCESSOS DE NULIDADE MATRIMONIAL

 

 

 

Miguel Falcão

 

 

 

Na inauguração do Ano Judicial da Rota Romana no ano passado [20], no seu discurso habitual o Papa Francisco quis reflectir sobre a sinodalidade nos processos de nulidade matrimonial.

O Papa explicou em que sentido a administração da justiça na Igreja precisa do espírito sinodal. “A sinodalidade implica caminhar juntos”. No processo de nulidade matrimonial, “mantendo-se cada um fiel ao seu próprio papel”, todos os intervenientes – as partes, as testemunhas, os juízes, o defensor do vínculo, os peritos – “deverão concorrer para o mesmo objectivo, que é iluminar a verdade sobre a união concreta entre o homem e a mulher, para chegar à conclusão sobre a existência ou não de um verdadeiro matrimónio”.

A razão é que o processo matrimonial “não atende apenas os interesses subjectivos das partes, mas tem em conta também a harmonia das relações dentro da comunidade eclesial”, isto é, a sua repercussão na vida da Igreja.

Começando pela fase preliminar, quando um fiel procura ajuda pastoral, “deve haver um esforço para descobrir a verdade sobre essa união”, a fim de ver a possibilidade da reconciliação ou da convalidação. Deste modo, manifesta-se claramente que “o objectivo do processo não é logo a declaração de nulidade” e ajuda-se os fiéis na rectidão de intenção, “estando dispostos a aceitar a decisão do tribunal, mesmo que não corresponda às suas convicções”.

“O mesmo objectivo de busca partilhada da verdade deve caracterizar todas as fases do processo judicial”.

Na fase do processo contraditório entre as partes, “cada uma deve estar disposta a apresentar a sua versão embora subjectiva dos factos, mas seria inadmissível pretender alterar ou manipular para se obter um resultado desejado”.

Esta atitude vale também para as testemunhas, os advogados, os peritos e, de modo especial, para os juízes. “Com efeito, a administração da justiça na Igreja é uma manifestação do cuidado das almas, que requer solicitude pastoral para serem servidores da verdade salvífica e da misericórdia”.

“O espírito sinodal implica um exercício constante de escuta, isto é, de compreender a visão e as razões do outro”, importante sobretudo para os juízes, desde a fase da instrução do processo. Quem dirige a instrução, deve saber conjugar o profissionalismo com a proximidade. Isto requer tempo, paciência, espírito paternal. Os juízes devem escutar tudo o que surgir no processo, a favor ou contra a nulidade, por dever de justiça e de caridade pastoral.

Esta atitude de escuta atenta dos juízes volta a ser necessária na fase da tomada da decisão (discussão da causa), para se chegar a um julgamento ponderado. O Papa não deixa de alertar para o perigo do legalismo, de aferrar-se à lei, esquecendo que a lei e o julgamento estão ao serviço da verdade, da justiça e da caridade.

Nesta fase, o Papa lembra a necessidade do discernimento. Com efeito, o sínodo não é uma sondagem de opiniões. “É preciso ter a capacidade de discernir, que permite ler o caso concreto à luz da Palavra de Deus e do Magistério da Igreja, para descobrir a existência ou não do consentimento matrimonial válido”. 

O processo termina com a sentença, em que o Papa volta a realçar a importância de estar baseada na verdade e de ser compreensível para todos [21]. Para o Papa, o processo canónico “deve estar ao serviço da justiça, inseparável da verdade e, portanto, da salus animarum.

 

Como se vê, em relação aos processos de nulidade matrimonial, o Papa Francisco insiste muito na necessidade de estar baseado na verdade, indissociável da justiça e da caridade; de facto, sem a verdade não há verdadeira justiça nem verdadeira caridade [22]. Além disso, sublinha o Papa que o processo não pode reduzir-se a atender os interesses das partes, mas tem de ter em conta a sua repercussão na vida da Igreja; quer dizer que o efeito pode ser fragilizar ainda mais a união matrimonial, com a consequência de aumentar o número de fiéis que chegam ao casamento mal preparados ou com a ideia de que facilmente conseguirão poder realizar um novo casamento.

 

 

 

 

 

 

 



[20] Discurso aos membros do Tribunal da Rota Romana na inauguração do Ano Judicial, em 27 de Janeiro de 2022.

[21] O que se consegue quando se procura expor claramente a verdade apurada, e se cuida a delicadeza nas referências a qualquer dos intervenientes.

[22] Cf. BENTO XVI, Discurso aos membros do Tribunal da Rota Romana na inauguração do Ano Judicial (29-I-2010).


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