TEOLOGIA E MAGISTÉRIO

A FORMAÇÃO DO PENTATEUCO II

 

 

 

 

 

Miguel Falcão *

 

 

 (continuação)

 

O Antigo Testamento como fonte da Revelação

Chegados a este ponto, podemos interrogar-nos: Se agora sabemos que o Pentateuco não foi escrito no tempo de Moisés nem dos que tiveram conhecimento do que Moisés queria, como podemos olhar para ele – e até por todo o Antigo Testamento – como Palavra de Deus?

O Cardeal Ratzinger, na altura Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, na Apresentação do documento da Pontifícia Comissão Bíblica sobre as relações do Cristianismo com as Escrituras Sagradas do povo judeu [1], procura responder a esta questão inquietante para o católico.

Recorda que, “em 1920, o eminente teólogo liberal Adolf von Harnack formulou a seguinte tese: «rejeitar o Antigo Testamento no século II (refere-se a Marcião), foi um erro que a grande Igreja condenou com razão; mantê-lo no século XVI era uma fatalidade à qual a Reforma ainda não podia subtrair-se; mas, desde o século XIX, conservá-lo ainda no protestantismo como documento canónico, de valor igual ao Novo Testamento, é consequência de uma paralisia religiosa e eclesiástica»” (pp. 6-7).

Além de que, no ambiente judaico de Alexandria, ter surgido com Fílon uma interpretação original do Antigo Testamento, para tornar a Bíblia de Israel acessível aos gregos, os autores do Novo Testamento interpretaram as Escrituras que conheciam (a Bíblia judaica na versão dos LXX) segundo os ensinamentos de Jesus, verdadeiro autor divino delas. Assim se vê no relato do encontro de Jesus com os discípulos de Emaús: “começando por Moisés e por todos os profetas, explicou-lhes o que em todas as Escrituras se referia a Ele” (Lc 24, 27) (pp. 7-8).

Continua o Cardeal Ratzinger: “Neste sentido, os Padres da Igreja não criaram nada novo com a sua interpretação cristológica do Antigo Testamento: somente desenvolveram e sistematizaram o que tinham encontrado no próprio Novo Testamento. Esta síntese, fundamental para a fé cristã, havia porém de tornar-se problemática quando a consciência histórica desenvolveu critérios de interpretação para os quais a exegese dos Padres aparecia privada de fundamento histórico e portanto objectivamente insustentável” (p. 9).

Em 1993, a Pontifícia Comissão Bíblica publicara o documento A interpretação da Bíblia na Igreja (15-IV-1993) que foi uma ajuda para entender melhor como a Palavra de Deus pode servir-se da palavra humana para dar à história em progresso um sentido para além do momento actual e precisamente assim obtém a unidade de todo o conjunto. No novo documento de 2001, mostra em conclusão que a hermenêutica cristã do Antigo Testamento, sem dúvida profundamente diferente da do judaísmo, «corresponde contudo a uma potencialidade de sentido efectivamente presente nos textos» (n. 64) (pp. 10-11).

Também faz notar o novo documento a necessidade de maior respeito pela interpretação judia do Antigo Testamento. A leitura judia da Bíblia «é uma leitura possível, que está em continuidade com as Sagradas Escrituras hebraicas da época do segundo Templo [reconstruído depois do cativeiro de Babilónia] e é análoga à leitura cristã que se desenvolveu paralelamente a ela, cada uma delas coerente com a respectiva fé e, portanto, irredutíveis» (n. 22) [2].

(Quer dizer: o cristianismo tem uma fé irredutível ao judaísmo, são duas religiões diferentes, embora tenha surgido das raízes do judaísmo: talvez ao modo como uma nova espécie biológica surge de uma anterior espécie).  

 

Mais tarde, já como Papa, Bento XVI publicou a Exortação Apostólica Verbum Domini (30-IX-2010), no seguimento do Sínodo dos Bispos sobre A Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja (Vaticano, 5 a 26 de Outubro de 2008), em que afirma que “é evidente que o próprio Novo Testamento reconhece o Antigo Testamento como Palavra de Deus e, por conseguinte, admite a autoridade das Sagradas Escrituras do povo judeu; (…) a raiz do cristianismo encontra-se no Antigo Testamento e sempre se nutre desta raiz. Por isso a sã doutrina cristã sempre recusou qualquer forma emergente de marcionismo, que tende de diversos modos a contrapor entre si o Antigo e o Novo Testamento.

“Além disso, o próprio Novo Testamento se diz em conformidade com o Antigo e proclama que, no mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo, encontraram o seu perfeito cumprimento as Escrituras Sagradas do povo judeu. Mas é preciso notar que o conceito de cumprimento das Escrituras é complexo, porque comporta uma tríplice dimensão: um aspecto fundamental de continuidade com a revelação do Antigo Testamento, um aspecto de ruptura e um aspecto de cumprimento e superação. (…) O mistério pascal de Cristo está plenamente de acordo – embora de uma forma que era imprevisível – com as profecias e o aspecto prefigurativo das Escrituras; mas apresenta evidentes aspectos de descontinuidade relativamente às instituições do Antigo Testamento” (n. 40).

E pouco depois, comenta: “Assim se exprimia, com aguda sabedoria, Santo Agostinho sobre este tema: «O Novo Testamento está oculto no Antigo e o Antigo está patente no Novo». Deste modo, tanto em âmbito pastoral como em âmbito académico, importa que seja colocada bem em evidência a relação íntima entre os dois Testamentos, recordando com São Gregório Magno que aquilo que «o Antigo Testamento prometeu, o Novo Testamento fê-lo ver; o que aquele anuncia de maneira oculta, este proclama abertamente como presente. Por isso, o Antigo Testamento é profecia do Novo Testamento; e o melhor comentário do Antigo Testamento é o Novo Testamento»” (n. 41).

(Quer dizer: qualquer que tenha sido o modo como se formou o Antigo Testamento, foi recebido como Revelação progressiva de Deus, primeiro ao povo de Israel, mais tarde ao novo Povo de Deus, embora sob uma nova luz, a luz da Revelação do Novo Testamento, a qual deve estar sempre presente).  

Podemos concluir que os textos da Sagrada Escritura recebidos canonicamente pela Igreja como inspirados, quer do Antigo como do Novo Testamento, são Palavra de Deus revelada e devem ser entendidos tal como os ensinou o Filho de Deus Jesus Cristo e os transmitiram os Apóstolos, e se mantêm no Magistério da Igreja.

 

Estado actual da investigação crítica sobre a composição do Pentateuco

Santiago Ausin, professor de Sagrada Escritura da Universidade de Navarra, expôs num artigo publicado em 1991 o estado da investigação crítica sobre a composição do Pentateuco, fazendo um balanço dos estudos publicados durante um século sobre a Hipótese documental de Wellhausen [3].

Segundo ele, a Hipótese documental teve muita influência na exegese e compreensão do Pentateuco, mas nunca foi aceite unanimemente e sempre houve autores reticentes, criticando ou sugerindo outros modos de explicação. Mesmo os que aceitam globalmente a hipótese, criticam aspectos particulares; outros sugerem o uso de tradições orais antigas ou outras fontes extra bíblicas.

Para ele, “são bom augúrio as tentativas de superar a excessiva atomização a que ia chegando a hipótese documental; por outro lado, percebe-se a necessidade de deixar para segundo plano a história da redacção, para se centrar na mensagem que o Pentateuco oferece, baseada numa teologia bíblica coerente com a unidade de todo o Antigo Testamento” [4].

Francisco Varo, também professor de Sagrada Escritura na mesma Universidade, analisando os Manuais académicos sobre o Pentateuco e os livros históricos do Antigo Testamento publicados nos seguintes 25 anos [5], confirma que “nos últimos anos se tende a considerar que o mais importante são os textos na sua forma final, os livros tal e como chegaram até nós, e não outros documentos criados pela crítica, que, por muito sólida que pareça a sua reconstrução, não deixam de ser puras hipóteses”; ao mesmo tempo “reconhece-se de modo quase unânime a importância decisiva que tem a investigação histórico-crítica para a interpretação dos textos” [6].

Por isso, sugere que ao ler uma passagem do Antigo Testamento se tenha em conta as circunstâncias em que foi escrita ou reescrita, para se aperceber do momento em que se encontrava a Revelação que foi evoluindo progressivamente com o tempo [7].

 

 



* Não posso deixar de agradecer a leitura deste texto e as observações dadas pelo Pe. Doutor Geraldo Morujão, durante muitos anos professor de Sagrada Escritura do então Instituto Superior de Teologia, de Viseu.

[1] Cf. PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA, El Pueblo judío y sus Escrituras Sagradas en la Biblia cristiana (24-V-2001), Librería Editrice Vaticana, Città del Vaticano 2001, 215 págs.

[2] Cf. Idem, pp. 5-13.

[3] Cf. SANTIAGO AUSÍN, La composición del Pentateuco. Estado actual de la investigación crítica, in Scripta Theologica 23 (1991/1), pp. 171-183.

[4] Ibidem, p. 183.

[5] Cf. FRANCISCO VARO, Manuales académicos de Pentateuco y libros históricos del Antiguo Testamento (1991-2016), in Scripta Theologica 48 (2016), pp. 465-486.

[6] Ibidem, p. 481.

[7] Cf. ibidem, p. 484.


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