TEMAS LITÚRGICOS

A Virgem Maria na Quaresma: Nova Raquel

 

 

 

 

Pedro Boléo Tomé

 

 

Sempre me intrigou a citação que Mateus faz de Jeremias, depois da matança dos inocentes, em que fala de uma voz que se escuta em Ramá, Raquel chora os seus filhos e não quer ser consolada porque eles já não existem.[1] Quem é esta Raquel? É a mulher de Jacob, uma das matriarcas do Povo de Deus. E é curioso ver que Raquel, com o correr da História, e em especial no tempo de Jesus, vai ser vista como uma figura maternal, a «Mãe do povo», aquela que encarna a maternidade e que, como mãe, irá interceder pelo povo. O autor B. Pitre assinala que há testemunhos do tempo de Jesus e de épocas posteriores de que Raquel é venerada pelos judeus piedosos e que, nas horas de dificuldade, recorriam à sua intercessão materna.

Lembrei-me desta figura ao olhar para as Missas da Virgem Maria propostas para o Tempo da Quaresma. Esperava encontrar a Missa da «Virgem Maria junto à Cruz do Senhor» e, efetivamente, existem, não uma, mas duas Missas, com esse nome. Porém, pareceu-me particularmente enternecedor encontrar a missa da «Virgem Maria, confiada como Mãe aos discípulos» e também a da «Virgem Maria, Mãe da reconciliação». Nela a figura materna de Maria aparece numa tonalidade especial: a de mãe do povo de Deus. Daí que me lembrasse de Raquel como figura de Maria. De facto, é particularmente interessante ver que a figura maternal de Maria, tal como nós experimentamos na Igreja, como nossa mãe, já estava presente no Antigo Testamento como que a prepará-la, como anúncio.

Fiquei maravilhado ao conhecer uma tradição judaica (refiro-me à tradição não bíblica), que narra a intercessão poderosa de Raquel. Nela, tanto Abraão como Moisés surgem diante de Deus a chorar e a implorar por Israel depois da destruição do Templo de Jerusalém. Porém, Deus não escuta as suas orações. É, então, que a matriarca Raquel intercede junto de Deus da parte do povo pecador e, nesse momento, Deus responde:

«Por ti, Raquel, Eu vou restaurar Israel» pois assim está escrito: «Assim diz o Senhor: uma voz foi ouvida em Ramá, lamentações e pranto, Raquel chora os seus filhos e não quer ser consolada, pois eles já não existem» (Jer 31, 15).

Estas palavras são seguidas por: «Isto diz o Senhor: cesse a tua boca de se lamentar e os teus olhos de verterem lágrimas; porque as tuas obras terão a sua recompensa, diz o Senhor, e os teus filhos voltarão à sua terra» (Jer 31, 16).[2]

Como disse, sempre me intrigaram estas palavras proféticas de Jeremias, que S. Mateus recolhe no evangelho da infância de Jesus ao narrar a morte dos inocentes. Qual o seu significado? Que lamentos são estes?

Raquel tinha sido sepultada em Rabbah, muito perto de Belém e os filhos de Israel, a caminho do desterro da Babilónia, tiveram de passar diante do seu túmulo. É este o primeiro sentido da profecia de Jeremias. A mãe do povo que, com dor, vê o seu filho a partir para terra estrangeira como cativo. E, desde então, os judeus olham para Raquel como a Mãe de Israel que chora por eles, que intercede e que obtém de Deus a promessa de que hão de voltar.

Este sentido faz-nos pensar imediatamente em Maria. Vê-la como Mãe, a interceder por nós, pecadores, merecedores de castigo, implorando de Deus misericórdia. Assim a apresenta a Igreja na primeira «Missa da Virgem Maria junto à Cruz do Senhor» como Mãe de Sião, mãe do povo, de um povo disperso, mandado para o desterro por causa dos seus pecados, mas que, agora, é salvo por Cristo, o filho primogénito de Maria:

«Ali, junto à cruz,

ela é a verdadeira Mãe de Sião,

que acolhe com amor materno os homens dispersos,

reunidos pela morte de Cristo».

Mas, recordemos melhor quem era Raquel. Era esposa de Jacob e mãe dos dois últimos dos seus doze filhos: José e Benjamim. São, portanto, os dois filhos mais novos do patriarca.

Se Jacob teve filhos de várias mulheres, Raquel foi de longe a favorita, foi o amor de Jacob desde a sua juventude. Esposa pela qual teve de lutar e esperar longos anos. Raquel era bela e pura. Todos estes elementos permitem-nos ver nesta mulher uma figura de Maria, a predileta do Senhor, amada desde antes da constituição do mundo. Sim, houve outras figuras femininas na história da salvação. Deus teve de esperar, de esperar muito, mas, quando chegou a plenitude do tempo, eis que surge Maria, a amada do Senhor, a Sua predileta, para dar à luz o Seu Filho!

Há ainda um ponto muito especial na figura de Raquel como figura de Maria. Raquel não dá à luz apenas José. O seu filho primogénito é aquele que vai ser vendido pelos irmãos, aquele que fica junto de dois ladrões (um é salvo e o outro não). José, filho de Raquel, tinha 30 anos quando entra ao serviço do Faraó (Jesus 30 anos quando começa o seu ministério), e, graças à sua atuação, a sua família, que depois daria origem a um povo, vai ser salva. Porém, não se limita a salvar os filhos de Jacob, salva também os gentios (tal como Jesus que não se limitará a salvar o povo, mas também todos os homens). Como dizíamos, Raquel tem um segundo filho, Benjamim. E morre ao dá-lo à luz. Benjamim é o filho da sua dor.

Se os paralelismos com Maria eram grandes, chegados a este ponto, não será difícil pensar no que nos narra S. João e que a liturgia seleciona como Evangelho de quatro das cinco «Missas da Virgem Maria para o Tempo da Quaresma»:

«Naquele tempo, estavam junto à cruz de Jesus sua Mãe, a irmã de sua Mãe, Maria, mulher de Cléofas, e Maria Madalena. Ao ver sua Mãe e o discípulo predileto, Jesus disse a sua Mãe: «Mulher, eis o teu filho». Depois disse ao discípulo: «Eis a tua Mãe». E a partir daquela hora, o discípulo recebeu-a em sua casa.»[3]

Texto este que vai ficar plenamente plasmado na Missa da «Virgem Maria, confiada como mãe aos discípulos». Nessa Missa vemo-la maternal e cheia de dor, acolhendo-nos e unindo as suas dores às do Seu Filho para que nós tivéssemos Vida e pudéssemos renascer.

Volto a olhar para a figura de Maria no antigo testamento, Raquel. Recorro uma vez mais a B. Pitre que vê na dor de Raquel a figura da dor de Maria. Recorda as dores de parto do Messias que tinham sido profetizadas,[4] isto é, toda a sua paixão. Dores  às quais Jesus se refere várias vezes[5]. São dele. Mas também são de Maria. Maria gerou Jesus sem dor, mas gerou-nos a nós com as dores de parto do Messias, com a dor da Cruz. Alguns autores espirituais falam da morte de Maria associada à morte do Filho. Uma morte espiritual. Nesse sentido, tal como Raquel, Maria teria morrido dando à luz João, o seu benjamim, ou seja, todos nós.

É muito interessante o que nos diz B. Pitre sobre alguns textos rabínicos antigos, anteriores à vinda de Cristo, que afirmam, por um lado, que à Mãe do Messias ser-lhe-iam poupadas as dores de parto, baseando-se numa profecia de Isaías.[6] Por outro, recorrem à profecia de Miqueias[7] para afirmar que à mãe do Messias não se lhe poupariam as dores de parto do Messias. Isto é, o parto do Messias seria virginal, mas não se lhe pouparia a Paixão do Filho. Essas dores, as dores de parto do Messias, haveria de sofrê-las.[8]

E é precisamente esta ideia que encontramos plasmada no prefácio da segunda Missa de «A Virgem Maria, junto à Cruz do Senhor»:

«Para renovar o género humano, quisestes, na vossa admirável sabedoria,

que junto à cruz do novo Adão estivesse a nova Eva,

a fim de que ela, que, pela virtude do Espírito Santo, foi sua Mãe,

por novo dom de bondade fosse companheira da sua paixão

e as dores que não sofreu ao dar à luz o Filho

as sofresse cruelmente ao fazer-nos renascer para Vós

 

 

 

 

 

 

 



[1] Jer 31,15

[2] Lamentations Rabbah 24 in PITRE, B. «Jesus and the jewish roots of Mary» p.169

[3] Jo 19,25-27

[4] Cfr. PITRE, B. «Jesus and the Jewish roots of Mary» p. 138-141

[5] Cfr. Jo 16, 19-23, Lc 12, 49-50

[6] Isaías 66, 7-8: «Antes da hora, ela deu à luz, antes de sentir as dores, deu à luz um filho».

[7] Miqueias 5, 2-3

[8] Cfr. PITRE, B. «Jesus and the Jewish roots of Mary» p. 133-158.


Imprimir | Voltar atrás | Página Inicial