TEOLOGIA E MAGISTÉRIO
A FORMAÇÃO DO PENTATEUCO
Miguel Falcão *
BIBLIOGRAFIA
– Sagrada Biblia. Pentateuco, Ediciones Universidad de Navarra, Pamplona 1997
– Sagrada Biblia. Libros proféticos, Ediciones Universidad de Navarra, Pamplona 2002
– FRANZ KÖNIG (dir.), Cristo y las religiones de la tierra, III, BAC, Madrid 1961 (trad. da segunda edição alemã, de 1956); em particular, J. SCHILDENBERGER, La religión del Antiguo Testamento (pp. 399-477)
– GIUSEPPE RICCIOTTI, Historia de Israel, trad. de Xavier Zubiri da 4ª ed. italiana, Barcelona, vol. I (1945) e vol. II (1947)
– JOSEF HUBY (dir.), Christus. Manuel d’Histoire des Religions, Paris 1916, Chapitre XV. JOHANNES NIKEL, La religion d’Israël (pp. 813-953)
Autoria mosaica do Pentateuco
1. Os livros sagrados do judaísmo constituem a sua Bíblia [1]; os cinco primeiros são: Genesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio, e formam o Pentateuco. A figura de Moisés é central nos últimos quatro livros do Pentateuco, que se referem ao êxodo do Egipto até à chegada à Terra prometida; e naturalmente ele é referido na restante Bíblia [2]. Pouco antes da época de Jesus Cristo, considerava-se que Moisés era o autor de todo o Pentateuco [3]; daí ser afirmada a autoria mosaica na tradição judaica e cristã [4].
Porém, desde antigamente, os estudiosos da Bíblia perceberam que o Pentateuco recebeu a sua forma actual depois do regresso dos judeus do desterro de Babilónia (séc. VI-V a.C.) [5]. Mas foi a partir do séc. XVII que um estudo sistemático chegou à conclusão de que na redacção final foram recolhidos diversos materiais de diferentes épocas, alguns deles antiquíssimos, os quais, reelaborados e reorganizados por autores inspirados, chegaram a constituir os cinco livros do Pentateuco, recebidos como sagrados pelo judaísmo, e mais tarde pela Igreja [6].
O principal crítico da tradicional autoria mosaica do Pentateuco foi o teólogo e biblista alemão do protestantismo liberal Julius Wellhausen (1844-1918), influído pela filosofia evolutiva de Hegel. Na sua obra Prolegómenos da História de Israel (1883) apresenta a Hipótese Documental, onde defende que o Pentateuco teve origem numa redacção composta de quatro textos originais independentes, datados vários séculos depois de Moisés [7].
Segundo ele, “a religião israelita ter-se-ia desenvolvido gradualmente a partir do paganismo, e a crença de que Yahveh era o deus de Israel e Israel o povo de Yahveh não teria adquirido valor de fundamento da nação e da sua história até à época de Moisés. Porém, a união entre Yahveh e Israel não se basearia numa aliança, mas numa relação natural em que o povo dedicava o culto a Yahveh e Yahveh outorgava protecção a Israel. O deus nacional israelita ter-se-ia desenvolvido em constante luta. No interior, tinha de lutar para eliminar a antiga importância religiosa das tribos e dos clãs, e ao mesmo tempo para os submeter à unidade de uma organização comum. A eliminação dos cultos privados e a sua substituição pelo deus nacional foi longa e trabalhosa. Teve de lutar também para vencer as influências que chegavam das culturas alienígenas. Quando os assírios aniquilaram o reino de Israel, converteu-se em deus universal. Este progresso da religião teria sido obra dos profetas. Contudo, reconhece Wellhausen: em última análise, é impossível explicar por que a história israelita, partindo de uns começos iguais aos da moabita, teve um final totalmente diferente” [8].
Outros discípulos alemães de Wellhausen e seguidores da sua tese de evolução do paganismo para o monoteísmo na religião de Israel – como o historiador Friedrich von Giesebrecht (1814-1889), os biblistas Rudolf Kittel (1853-1929) [9] e Walther Eichrodt (1890-1978), os arqueólogos bíblicos Ernst Sellin (1867-1946) e William Albright (1891-1971) [10] – também pensam que o monoteísmo foi introduzido por Moisés [11]. Notemos que todos eles como Wellhausen não duvidam da existência histórica de Moisés e do monoteísmo de Israel [12].
Para Wellhausen, o Pentateuco seria uma compilação de quatro fontes pós-mosaicas: duas obras históricas – yahvista e elohista, segundo a designação de Yahveh e Elohim, respectivamente, para o nome próprio de Deus –, compostas por volta de 850 (ou 750) a.C.; o deuteronómio, obra redigida nos círculos sacerdotais de Jerusalém, pouco antes de 622 a.C., quando foi «encontrada» no Templo (cf. 2 Re 22,8); e o código sacerdotal, redigido por Ezequiel e os seus discípulos na época do cativeiro de Babilónia. Posteriormente, foi-se reconhecendo que boa parte do código sacerdotal contém leis que estavam em vigor antes do exílio, e que algumas partes do «livro da aliança» (Ex 20-23; Ex 34, 10-28) e do deuteronómio contêm preceitos e cerimónias que podem remontar-se à época primitiva da comunidade mosaica [13].
Conforme um biblista católico propunha em meados do séc. XX, certamente o Pentateuco tem uma longa história. No decurso dos tempos, uma série de homens inspirados por Deus completaram, segundo o espírito de Moisés, a estrutura fundamental, mosaica, e um sacerdote escritor, igualmente inspirado, deu provavelmente à obra a sua última perfeição, contribuindo a dar maior realce às ideias fundamentais da obra mosaica [14].
Mais recentemente, segundo a Bíblia de Navarra, na Introdução ao Pentateuco, “parece seguro que as antigas tradições em torno aos patriarcas, a Moisés, até à chegada à Terra prometida, foram reunidas e ampliadas de diversas maneiras nos momentos de florescimento cultural e religioso do povo de Israel” [15]. E oferece a seguir um quadro possível da formação do Pentateuco [16]:
No reino de Israel, a Norte, a pregação dos profetas Amós (762-745 a.C.) e Oseias (750-725 a.C.) ajudou a aprofundar no significado religioso que as antigas tradições tinham para o povo. Quando o reino foi conquistado pelos assírios e destruída a capital em Samaria (722 a.C.), muitos fugiram para o Sul levando as suas tradições escritas – seria o documento elohista, porque se designava a Deus com o nome de Elohim.
No reino de Judá, ao Sul, deram-se profundas reformas religiosas nos reinados dos reis Ezequias (727-698 a.C.) e Josias (639-609 a.C.), coadjuvados pela pregação dos profetas Isaías (733-698 a.C.) e Jeremias (627-582 a.C.), respectivamente, que originaram um novo modo de entender os acontecimentos passados e se traduziram numa tradição escrita – seria o deuteronómio, que expõe a Lei de Moisés em forma de grandes discursos, e advoga pela centralização do culto no Templo de Jerusalém.
Provavelmente, esta actividade serviu de estímulo para a composição de antigos relatos tradicionais, desde a origem do mundo até à época de Moisés – seria o documento yahvista, por referir em ocasiões Yahveh como nome próprio de Deus.
O desterro de Babilónia dos judeus de Jerusalém (séc. VI a.C.) [17] foi um momento importante de aprofundamento religioso. Os sacerdotes deportados – entre os quais sobressai o profeta Ezequiel (593-571 a.C.) – procuraram manter a fé e os costumes do povo em contraste com a religião da terra, cheia de mitos e práticas próprias do paganismo. Para isso, recordavam que a vida de Israel se desenvolveu à raiz de sucessivas alianças com Deus. Os escritos desta época contêm as leis que se devem seguir no culto e nos costumes – seria o código sacerdotal [18].
Em resumo, parece claro que a doutrina contida nos cinco livros do Pentateuco não surgiu como algo novo no tempo das várias redacções, mas como renovação ampliada de tradições anteriores de Israel [19].
(continua)
* Não posso deixar de agradecer a leitura deste texto e as observações dadas pelo Pe. Doutor Geraldo Morujão, durante muitos anos professor de Sagrada Escritura do então Instituto Superior de Teologia, de Viseu.
[1] A Bíblia cristã inclui a Bíblia judaica (Antigo Testamento) e o Novo Testamento.
[2] Cf. WILLIAM H. SLOAN, Concordancia completa de la Santa Biblia, Barcelona 1988, número de vezes em que o nome de Moisés aparece na Bíblia: Êxodo (97), Levítico (6), Números (121), Deuteronómio (31), Josué (39), Juízes (4), 1 Samuel (1), 2 Reis (3), 1 Crónicas (4), 2 Crónicas (10), Esdras (3), Neemias (5), Salmos (6), Isaías (1), Jeremias (1), Daniel (2), Malaquias (1), Mateus (7), Marcos (2), Lucas (10), João (13), Actos (19), Romanos (2), 1 Coríntios (2), 2 Coríntios (3), 2 Timóteo (1), Hebreus (11), Judas (1), Apocalipse (1).
[3] Por exemplo, nas palavras de Jesus: “Moisés, por causa da dureza do vosso coração, permitiu-vos repudiar as vossas mulheres, mas no princípio não foi assim” (Mt 19, 8); “Moisés disse: Honra teu pai e tua mãe” (Mc 7, 10). Também o Apóstolo Filipe: “Encontrámos Aquele de quem escreveu Moisés na Lei” (Jo 1, 45). E São Pedro: “Moisés disse: O Senhor vosso Deus vos suscitará um profeta dentre vossos irmãos, como eu” (Act 3, 22). Igualmente São Paulo: “Está escrito na Lei de Moisés: Não atarás a boca ao boi que debulha” (1 Cor 9, 9).
[4] Cf. Sagrada Biblia. Pentateuco, Ediciones Universidad de Navarra, Pamplona 1997, p. 21.
[5] Cf. Ibidem, nota 5: “S. Jerónimo explicava que, no Deuteronómio, a narração da morte de Moisés não podia ser dele, como também quando se diz “até ao dia de hoje” (Deut 34), mas deviam ser de Esdras ao fazer a cópia da Lei de Moisés (cf. De perpetua virginitate B. Mariae, 7; PL 23, 190)”.
[6] Cf. Sagrada Biblia. Pentateuco, cit., pp. 21- 22.
[8] Cristo y las religiones de la tierra, III, pp. 404- 405.
[9] R. Kittel chega a afirmar: “Se uma figura como Moisés não fosse testemunhada pela tradição, seria necessário pressupô-la; como a tradição no-la atesta, deve-se aceitar como histórica” (A ciência do Antigo Testamento apresentada em seus resultados mais importantes, 1900, p. 128) – in Christus. Manuel d’Histoire des Religions, p. 845.
[10] W. Albright era norte-americano e de religião metodista; tornou-se conhecido do público pelo seu papel na autenticação dos Manuscritos do Mar Morto descobertos em 1947 e defendeu com os seus trabalhos arqueológicos a historicidade de Abraão, Isaac, Jacob e muitos eventos bíblicos
(cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/William_Foxwell_Albright).
[11] Cf. Cristo y las religiones de la tierra, III, p 405.
[12] Segundo a Bíblia, o monoteísmo em Israel começa com a vocação a Abraão: “Disse o Senhor a Abrão: Sai da tua terra e da tua parentela e da casa do teu pai para a terra que te mostrarei; e farei de ti um grande povo (…) E Abrão partiu como lhe tinha mandado o Senhor” (Gen 12, 1-2. 4)
Cf. Sagrada Biblia. Pentateuco, comentário a Gen 12, 1-6.
Moisés reconhece em quem lhe fala o Deus dos patriarcas: “Disse: Eu sou o Deus do teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacob” (Ex 3, 6).
Cf. Sagrada Biblia. Pentateuco, comentário a Ex 3, 4-10.
[13] Cf. Cristo y las religiones de la tierra, III, pp. 409- 410.
[14] Cf. J. SCHILDENBERGER, La religión del Antiguo Testamento, in Cristo y las religiones de la tierra, III, pp. 410-411.
[15] Sagrada Biblia. Pentateuco, p. 22.
[16] Cf. Idem, pp. 22- 23, completado com datas prováveis tomadas de várias fontes.
[17] Nabucodonosor II, o maior rei do império babilónico, conquistou o reino de Judá e deportou os vencidos para Babilónia, em três levas – 597, 586 e 582 a.C. –, tendo destruído da segunda vez a cidade e o Templo, em represália pela rebelião havida. Ezequiel foi na primeira deportação para Babilónia e ajudou os mais fervorosos a aprofundar na religião dos antepassados, reflectindo sobre os acontecimentos como povo eleito de Deus (cf. G. RICCIOTTI, Historia de Israel, I, §§ 524 ss; Sagrada Biblia. Libros proféticos, p. 643).
[18] Ricciotti dá uma perspectiva histórica ao aprofundamento da religião e do culto de Israel durante o cativeiro de Babilónia. A ruína do reino de Judá com a destruição de Jerusalém e do Templo, antecedida da ruína e dispersão do reino do Norte, levou os deportados a reconhecerem que era um castigo por terem abandonado o culto de Yahveh e seguido o culto idolátrico dos povos vizinhos, com a consequência moral do abandono das leis de Moisés. Com a pregação profética de Ezequiel, confiaram que Yahveh havia de os salvar se eles voltassem para Ele e começaram a preparar uma nova compilação dos factos passados e uma nova legislação para quando chegasse a hora do regresso à sua terra. Basearam-se nas reformas anteriores de Ezequias e Josias e procuraram restaurar as tradições antigas, com a circuncisão, a celebração da Páscoa, as reuniões para as leituras e orações (embrião das futuras sinagogas). Além de algumas fontes escritas que existiam, muito mais foi tomado das tradições que se transmitiam oralmente de memória, habitual entre os semitas. Era um regresso ao yahveismo, projectado para tempos messiânicos à espera do Messias, ao mesmo tempo que adaptavam a legislação aos novos tempos, agora com uma tendência rigorista. Esta visão projectada para o futuro partia do passado, como um seu aperfeiçoamento e actualização, e exigiu um trabalho esforçado durante anos dos sacerdotes e dos escribas doutores. O resultado foi o código sacerdotal, que Esdras levou a Jerusalém em 443 a.C., depois da reconstrução por Neemias da cidade e do Templo, e foi lido e explicado ao povo pelos levitas durante uma semana, provocando o arrependimento e a renovação de fidelidade a Yahveh (cf. G. RICCIOTTI, Historia de Israel, II, §§ 55-79; 137)
[19] O facto de que o povo reunido para a leitura da Lei de Moisés, quer no reinado de Josias (cf. 2 Re 23, 1-3), quer depois do regresso do cativeiro (cf. Neemias 8, 1-12), ter aclamado e disposto a corrigir, parece-nos um sinal de que achavam conforme com as tradições anteriores, conhecidas mas abandonadas.