TEMAS LITÚRGICOS

O mistério pascal na Eucaristia

 

 

 

 

Pedro Boléo Tomé

 

 

Em determinada ocasião fiz uma explicação detalhada da Missa a um grupo de jovens. Passado um tempo a pessoa que os orienta comentou-me que tinham feito uma espécie de «queixa». Não gostaram de ver a Eucaristia como a renovação do sacrifício da Cruz. Queriam olhar para a Missa como algo mais agradável. Não queriam ir ao Calvário. Percebi esse sentimento. Aliás, julgo que o notei no próprio momento em que falei da simbologia que nos fazia olhar para o altar e ver ali não apenas a mesa de uma ceia, mas o altar de um sacrifício. Sobre o altar do Templo os sacerdotes da Antiga Lei dessangravam a vítima. Pois, agora, como já o dissemos aqui noutros artigos, sobre a ara eucarística temos o pão e o vinho que se convertem em corpo e sangue de Cristo. O que vemos simbolizado é o corpo separado do sangue. «Isto é o meu corpo» e «isto é o meu sangue». Cristo vai ficar por completo, com o Seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade, tanto no pão como no vinho, mas o símbolo entra-nos pelos olhos: o que vemos é pão e vinho. O que ouvimos são as palavras de Jesus que nos falam do Corpo que será entregue e nos falam do Sangue que será derramado. Sobre o altar significa-se, pois, o sacrifício e nós somos transportados até esse momento em que Cristo é oferecido ao Pai, como cordeiro pascal que derrama todo o seu sangue.

Para quem não se habituou a ver os sacrifícios da Antiga Lei este quadro não é agradável. Sabia-o. Por isso mesmo me esforcei, naquela explicação aos jovens, por insistir na forma bela, íntima e calorosa, familiar até, com que Jesus inventa a forma de tornar presente aquele sacrifício. Percebi, no entanto, que preferiam muito mais ir até à última ceia do que até ao Calvário. Recordei a definição clássica que se aprendia antigamente na catequese: «a Missa é a renovação incruenta do sacrifício do Calvário». Essa palavra «incruenta» é fundamental. Por isso, sublinhei-a e procurei relacioná-la com a atmosfera vivida na última Ceia e nas nossas celebrações eucarísticas, tão festivas, tão belas, tão agradáveis. A renovação é «incruenta», é feita sem dor. Jesus Cristo morreu de uma vez para sempre. Não vamos fazê-lo sofrer mais sobre o altar. Sim, aquela crítica fez-me pensar e, quanto mais penso, mais me parece que aqueles jovens tinham alguma razão. Mais ainda, alertado por esta sensibilidade, fui reparando que os autores recentes quando querem falar da «anamnese» que se dá no sacramento da Eucaristia, isto é, desse «tornar presente» próprio do sacramento, não se referem apenas ao sacrifício do Cruz ou do calvário. Falam, sim, do «Mistério Pascal» como um todo. Isto é, falam da «Paixão, Morte, Ressurreição de Jesus e Ascensão aos Céus».[1] Porquê? A razão parece evidente: é mais completo. Era o que se queria dizer com a tal palavra, «incruenta», daquela antiga definição catequética. Centrava-se a atenção no sacrifício do calvário olhando para ele desde a ressurreição. Porém, está claro que há um evoluir no modo de expressar o mistério eucarístico quando nos referimos ao mistério pascal. E, segundo Félix Arocena, cabe ao Concílio Vaticano II esse mérito. Efetivamente, a Sacrossanctum Concilium, logo no seu número cinco, coloca o mistério pascal de Cristo no centro da reflexão teológica e no centro da vida da Igreja:

A «obra da Redenção dos homens e da glorificação perfeita de Deus, prefigurada pelas grandes obras divinas operadas no povo do Antigo Testamento, realizou-a Cristo Senhor, principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição dos mortos e gloriosa Ascensão, pelo qual “morrendo destruiu a nossa morte e ressurgindo restaurou a nossa vida”».

Note-se que este ponto encabeça o capítulo sobre a natureza da sagrada liturgia. «Afirmar que a liturgia é a atualização do mistério pascal – diz Arocena - é o melhor modo de recolher o núcleo distintivo da liturgia cristã. Dito isto, está dito o essencial da liturgia; se se silencia isto, já não estamos a falar da liturgia cristã».[2]

De facto, as Anáforas redigidas depois do Concílio vão todas incluir especificamente a ressurreição entre os mistérios de Cristo que são tornados presentes naquele momento.[3]

Porém, se toda a liturgia é esse memorial do mistério pascal de Cristo e a Eucaristia em particular, onde está simbolizada na celebração eucarística a ressurreição? Já vimos que o sacrifício pode ser claramente identificado, se tivermos a devida catequese. Se, efetivamente, celebramos todo o mistério pascal e o tornamos presente através deste memorial, deverá haver algum rito, algum símbolo, algum gesto que o torne presente. Pensei, pois, na alegria dos cânticos, na beleza das alfaias litúrgicas, em todos os cuidados que se têm com a liturgia que a tornam festiva. Todos esses elementos evocam a alegria da ressurreição e a presença viva do Ressuscitado entre nós.

Mas, não haverá nada mais explícito?

Sim, há um pequeno rito, que passa bastante inadvertido à maioria dos fiéis. O sacerdote, depois de dizer «A paz do Senhor esteja sempre convosco» e do abraço da paz, «toma a hóstia, parte-a sobre a patena, e deita um fragmento no cálice, dizendo em silêncio: Esta união do Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, que vamos receber, nos sirva para a vida eterna». Se antes se simbolizou a separação do sangue do corpo, agora, diante dos fiéis, juntam-se. As palavras que o sacerdote diz em voz baixa acendem em si a fé do mistério que celebra. O alimento para a vida eterna não é o corpo ou o sangue da vítima que se ofereceu ao Pai, mas a união de ambos numa nova vida. É Cristo vivo, Cristo ressuscitado. É esse o Jesus que comungamos.[4]

Meditando nestes simbolismos vislumbrei, porém, uma possível representação, talvez algo mística, é verdade, mas que me parece fazer algum sentido e que pode ajudar-nos a olhar para a Eucaristia com essa visão mais completa do memorial do mistério pascal de Cristo. Permitam-me, por favor, esta originalidade:

É sabido que a «fé católica ensina que, mesmo sob uma única espécie é Cristo todo e inteiro e o verdadeiro Sacramento que se recebe; consequentemente, quem receber uma só das duas espécies nem por isso fica privado de qualquer graça necessária à salvação».[5] No entanto, para que a Missa seja válida, o sacerdote deve comungar o corpo e o sangue de Cristo.[6] Qual a razão? Sempre pensei que fosse para «consumar» o sacrifício. Mas, não será para que seja significado no seu conjunto todo o mistério pascal? Vejamos: que acontece quando o sacerdote comunga as duas espécies? O corpo e o sangue são «sepultados» no seu peito. Onde é que se deu a ressurreição? No sepulcro, três dias depois de morto. O corpo voltou à vida. Ora no peito do sacerdote, qual nova sepultura, o corpo e o sangue que simbolicamente estavam separados, juntam-se de novo e dão lugar a uma nova vida em Cristo. Jesus deve ressuscitar na pessoa do sacerdote que se alimenta do seu Corpo e Sangue. Onde ressuscita? Nele, na sua vida. Uma vida nova, a vida do Espírito.

Pensava nesta imagem como muito original, talvez excêntrica, quando no tríduo pascal li um texto de S. Josemaria que me fez recordar estas deambulações pelo simbolismo da sepultura e ressurreição de Jesus. S. Josemaria descrevia a descida da Cruz e depois escrevia: «Eu subirei com eles ao pé da Cruz, apertar-me-ei ao Corpo frio, cadáver de Cristo, com o fogo do meu amor..., despregá-Lo-ei com os meus desagravos e mortificações..., envolvê-Lo-ei com o lençol novo da minha vida limpa e enterrá-Lo-ei no meu peito de rocha viva, donde ninguém mO poderá arrancar; e, aí, Senhor, descansai! ».[7] Não é isto que acontece quando comungamos com fervor? Sepultamos o Senhor no nosso peito para que ressuscite na nossa vida. Talvez, por isso mesmo, no ritual do Matrimónio se recomenda que os noivos, ministros do sacramento realizado, comunguem sobre as duas espécies. Aqueles que se tornaram um só, devem tornar-se um só com Cristo também. Ele deve ressuscitar nessa vida a dois e assim, aquele casal será, verdadeiramente, espelho da Santíssima Trindade.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Veja-se, por exemplo, J. CORBON em A fonte da liturgia, p. 115: «O que a anáfora eucarística celebra é, pois, o acontecimento da Páscoa. Nele se cumpre o evangelho, o Espírito “ergue para o alto o nosso coração” a fim de nos fazer participar da Ascensão do Senhor, esse voltar jubiloso para o Pai, onde toda a realidade, que é graça, será enfim libertada da morte para se tornar “acção de graças”».

[2] F. AROCENA, Teología litúrgica, una introdución, Palabra 2017, p. 57.

[3] A propria IGMR no n. 79 ao enumerar a anamnese como um dos elementos principais da Oração Eucarística descreve-a como a celebração da memória do mesmo Cristo, recordando de modo particular a sua bem-aventurada paixão, gloriosa ressurreição e ascensão aos Céus.

[4] «O sacerdote parte o pão e deita uma parte da hóstia no cálice para significar a unidade do Corpo e do Sangue do Senhor, na obra da salvação, isto é, do Corpo de Jesus Cristo vivo e glorioso»: IGMR nº 83.

[5] IGRM nº 282. Neste ponto a instrução está a citar a Sessão XXI do Concílio de Trento.

[6] Cfr. IGRM nº 85.

[7] S. JOSEMARIA, Via-Sacra, Estação XIV, ponto nº1.


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