OPINIÃO
A FAMÍLIA, IMAGEM DA
SANTÍSSIMA TRINDADE
Amadeu Mesquita Guimarães
Docente universitário
Está a celebrar-se, um pouco
por todo o lado, o décimo aniversário do Ano Internacional da Família,
instituído em 1994 pela ONU e logo apoiado pela Igreja. Muito bem escolhido, o
tema central das cerimónias de Fátima durante 2004 é a Família, tendo como mote
o Quarto Mandamento. É bom que cada cristão, cada católico, se sinta
responsabilizado a dar o seu contributo, seja vivendo mais a sério os seus
deveres familiares, seja ajudando os outros a fazê-lo. Impelido por esta
celebração, permito-me dar uma pequena achega para a compreensão da importância
imensa da Família, partindo das únicas credenciais que posso apresentar: a de
ser um cristão, um simples cristão, como qualquer outro, mas seriamente
interessado na minha formação doutrinal; e a de ser patriarca de uma família
numerosa, com dez filhos e dezoito netos.
Todo o cristão sabe que foi
criado à imagem e semelhança de Deus: di-lo textualmente o livro do Génesis, no
versículo 26 do 1.º capítulo («façamos o homem à nossa imagem e semelhança»). E
ao falar no plural («nossa»), Deus quis insinuar que foi toda a Trindade a
criar o homem, muitos séculos antes de Deus se ter revelado como Trindade ao
homem. Esta afirmação é de Santo Agostinho, no seu «Tratado sobre a Trindade»,
e foi utilizada por S. Tomás de Aquino, para dar resposta afirmativa ao Artigo
5.º da Questão 93 da I Parte da sua monumental Suma Teológica: «Se a Imagem de
Deus está no Homem segundo a Trindade de Pessoas». Apoiados por tão eminentes
santos e teólogos, não devemos duvidar que fomos criados, cada um de nós, pela
Santíssima Trindade.
A Santíssima Trindade como
Família
Proponho-me dar agora o passo
seguinte: não só cada um de nós, mas também cada uma das famílias humanas foi
criada à imagem da Trindade. Não se trata aqui de uma verdade revelada, mas de
uma conclusão razoavelmente evidente, ainda que, tanto quanto sei, mal
conhecida. Que seja lícito dizer que a Trindade é uma Família, e que muitos o
tenham afirmado, parece estar fora de dúvida. Ensina-nos a Teologia que Deus
Pai gera desde sempre Deus Filho e que Pai e Filho se amam tanto que esse mútuo
Amor é o Espírito Santo. Um só Deus em três Pessoas, Deus Uno e Trino. Sendo
assim, a Trindade é verdadeiramente uma Família: o Pai-Criador gera o Filho, o
Verbo, a Palavra de Deus que veio ao mundo salvá-lo e ao homem, revelando-se e
permanecendo no homem pelo seu Amor, que é o Espírito Santo. Pode objectar-se
que, para haver família, é preciso uma mãe, mas quantas vezes se afirma, e
muito bem, que Deus é Pai e Mãe? Na unicidade de Deus estão a paternidade e a
maternidade, que só na fragilidade das criaturas precisam de ser separadas. Na
Trindade há paternidade e filiação, há Amor, há eterna unidade : há, portanto,
Família!
A família, imagem da
Santíssima Trindade
E de que autoridade me sirvo,
já que nenhuma me é reconhecida, para avançar com a convicção de que a família
humana foi criada à imagem da Trindade? Da autoridade do Papa João Paulo II. Na
Exortação Apostólica «Familiaris Consortio», de 1981, ainda que não lhe faça
nenhuma referência explicita, o Papa faz declarações como estas: «Deus...chama
o homem e a mulher...a uma participação especial do seu amor e do seu poder de
Criador e de Pai» (n. 28); «porque o amor dos cônjuges é uma participação
singular no mistério da vida e no amor do próprio Deus...» (n. 29). Foi
pensando nelas que comecei a aperceber-me da relação especial entre a família e
a Santíssima Trindade. Mas, mais tarde, noutro documento, a «Carta às
Famílias», de 1994, na celebração do Ano da Família referido acima, o Papa foi
mais claro: «À luz do Novo Testamento, é possível vislumbrar como o modelo
originário da família deve ser procurado no próprio Deus, no
mistério trinitário da sua vida. O 'Nós' divino constitui o modelo eterno do
'nós' humano» (n. 6). O itálico, no texto do Papa, parece-me prova evidente de
que João Paulo II sabia bem que estava dizendo algo extremamente importante e,
pelo menos em boa parte, novo. Esta novidade – feliz novidade! – exprimo-a do
modo já dito e aqui repetido: a família foi instituída por Deus à imagem da
Trindade.
É impossível ignorar as
consequências desta afirmação. A família passa a ser apreciada a um nível muito
superior: não só como a célula constitutiva da sociedade, o que qualquer pagão
culto aceitará, mas também como uma referência directa a Deus. Esta sua nova
dignidade, que deve servir de estímulo para os cristãos, traz consigo um risco
não pequeno, porque transforma a família num alvo privilegiado dos ódios a Deus
(já que o demónio sabe aquilo que tantos ignoram!) – como facilmente se
entenderá ao procurar explicar o porquê de tanto alarido sobre o aborto, ou o
divórcio, ou o casamento de homossexuais, ou a educação laica, ou
manipulações genéticas, ou..., ou... Mas não vou por aí; ficará para outra vez.
A Igreja como família de
Deus
Temos portanto uma Família
Divina – a Santíssima Trindade – e as famílias humanas. Entre uma e outras, há
uma distância infinita, tão grande que é impossível, à escala humana,
estabelecer uma ponte entre elas. Como sempre, Deus vem em socorro dos homens:
com imensa sabedoria, colocou entre elas uma terceira Família – a Igreja
– que é simultaneamente divina e humana. E assim desapareceu a distância! A
Igreja tem a Cabeça – Jesus Cristo – na Trindade e o seu corpo – nós, os
cristãos – espalhado por todo o mundo: está no Céu, está também na Terra. Nesta
Família, divina e humana, Deus é o Pai, a Igreja é Mãe, e todos somos seus
filhos. Sendo divina, a Igreja é por isso mistério. Lembro-me de ter
encontrado, num dos livros de Peter Drucker, um grande mestre de Gestão, os
esforços inúteis que ele fazia para «explicar» a Igreja, a única instituição
com 2000 anos de existência – o que tanto o espantava! Com olhos humanos,
ninguém pode ver a Igreja como ela é, porque a parte mais nobre está oculta,
mesmo a olhos de mestre.
Ultrapassando as dimensões
humanas, a Igreja é alvo de interpretações muito erradas, mesmo por parte de
pessoas bem intencionadas. Não se entende facilmente que seja, ao mesmo tempo,
santa, impecável, infalível, sem mancha, sábia, e – por outro lado – tão
claramente composta por milhões e milhões de pecadores! Por mais que se
explique que a Igreja é uma verdadeira «comunhão de santos», imensa, constituída
por Jesus Cristo, pelos santos do Céu, pelas almas do Purgatório e por todos
nós, os viventes actuais e futuros, a verdade é que a sua imagem visível – os
cristãos desta Terra – não é nada que mereça grandes elogios. Ou, pelo menos,
todos damos alguma razão, pelos nossos actos, àqueles que nos censuram. Por
isso, foi muito meritória a atitude de João Paulo II, quando, durante o Jubileu
do ano 2000, pediu humildemente perdão por tantas faltas cometidas por
cristãos, ao longo da História. A Igreja não peca – os cristãos pecamos sete
vezes ao dia!
A Sagrada Família
Dentro da Igreja – e nas
origens da Igreja – colocou Deus uma Família singular: a Família de Nazaré, a
Sagrada Família – Jesus, Maria e José. Alguns santos, com muita
propriedade, chamaram a esta Família a «Trindade da Terra». É ela, como a
Santíssima Trindade, modelo das famílias humanas; com a vantagem de melhor a
entendermos e do exemplo da sua vida, tão perto de nós: sofreram a pobreza,
trabalharam, tiveram parentes, amigos e vizinhos, viveram felizes e irradiaram
felicidade, padeceram sem queixumes injustiças e morte. Aparentemente, a
Família de Nazaré foi uma família como qualquer outra; e, no entanto, esta
família humana está bem no seio da Trindade: Jesus, Homem-Deus, é Deus-Filho,
uma das Pessoas da Trindade, aonde se encontra também com o seu corpo humano
(ainda que corpo glorioso), com as chagas da Cruz; Maria – Filha de Deus Pai,
Mãe de Deus Filho e Esposa de Deus Espírito Santo – que foi coroada pela
Trindade ao recebê-la Assunta ao Céu, está certamente envolvida pela Trindade –
que a escolheu desde toda a eternidade para Mãe de Deus e dos homens; e José,
que nunca se separou de Jesus e de Maria, continuará no seu lugar próprio.
Em resumo: a família humana
foi querida por Deus como imagem da Trindade. E para que a distância não pareça
intransponível, Deus deu-nos a Igreja e, nesta, a Família de Nazaré. Que grande
responsabilidade, a das famílias cristãs! E que imensa alegria a nossa, ao
reconhecermos quanta confiança Deus depositou em nós, fazendo-nos seus filhos e
seus continuadores, ao constituirmos uma família à Sua imagem, ao dar-lhe
filhos nossos, que são também filhos Seus e semente de novas famílias!