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A HUMILDADE
DIVINA
Hugo de Azevedo
Nasce Deus num curral!...
Morre Deus num patíbulo!... Se a humildade do homem é uma exigência evidente da
sua condição de criatura, e mais ainda da sua fraqueza moral, a humildade do
Criador é um profundo mistério! Uma tal humildade, que excede toda a imaginação
humana, e nos deixa assombrados ao contemplarmos esse abismo insondável, ao
aperceber-nos de que Ele se põe a nossos pés, depois de nos oferecer «o mundo,
e os outros mundos que brilham na noite: o Universo inteiro», que «é nada e menos que nada, ao lado deste Deus
meu – teu! – tesouro infinito, pérola preciosíssima, humilhado, feito escravo,
aniquilado sob a forma de servo no curral onde quis nascer, na oficina de José,
na Paixão e na morte ignominiosa, e na loucura de Amor da Sagrada Eucaristia»
(S. Josemaría, «Caminho», 432).
Está claro que tal humildade
procede doutra razão, que não é aquela nossa. Provém, de facto, de «uma loucura
de Amor» divino. Mas nós mesmos temos disso alguma experiência, embora em
diferente medida, nas «loucuras de amor» dos pais pelos filhos, nos «amores de
perdição» dos enamorados, no sacrifício da própria vida pela pátria ou por um
ideal de justiça, ou de serviço aos nossos semelhantes. A renúncia total por
amor dos outros, a completa «aniquilação» pessoal, a doação incondicional...
não nos são totalmente estranhas, graças a Deus; e assim, por analogia, somos
capazes de compreender de algum modo a humildade divina.
Mas não nos enganemos: «Quem
se humilha será exaltado» (Lc 14,
11). A humildade engrandece-nos; não nos amesquinha. Se já o reconhecimento da
nossa absoluta dependência do Criador confere à existência humana uma dimensão
transcendente e sagrada; se já a consciência da nossa miséria moral ressalta o
grandioso projecto de Deus – «Sede perfeitos como o vosso Pai celestial é
perfeito» (Mt 5, 48) – ; a «humilhação» de Cristo produz n’Ele uma
extraordinária glória, objecto do famoso cântico paulino: «Por isso, Deus O
exaltou e Lhe deu um nome que está acima de todo o nome, de modo que, ao nome
de Jesus, todo o joelho se dobre nos céus, na terra e nos infernos, e toda a
língua confesse: Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai!» (Fil 2, 9-11)
A humildade cristã tem muito
mais a ver com o amor do que com a virtude da temperança, pela qual nos
cingimos à real condição de criaturas e de pecadores, e vencemos a embriaguez
da soberba. Embora convenha exercitar-nos frequentemente nesta consideração
elementar e básica, porque o amor próprio nunca cessará de brotar e rebrotar
dentro de nós, a humildade «prática», de serviço a Deus e ao próximo, com o
efectivo esquecimento de nós mesmos, só se consegue quando o amor nos «aliena»,
transformando «o amador na coisa amada». Para tanto, não precisamos de buscar
exemplos nos santos; basta-nos olhar ao nosso redor; basta-nos olhar para nós
mesmos: quantas vezes nos sacrificamos por quem amamos, sem repararmos nisso,
e, pelo contrário, tendo nisso imenso gosto! Fomos humildes, e, longe de nos
sentirmos diminuídos, sentimo-nos felizes...
– «Afinal, o que é o
Evangelho?», perguntava-me com certo ar displicente um amigo bastante original.
E, perante a minha surpresa, ele próprio acrescentou: – «A história de um Homem
feliz!» Que bem dito está! Quem mais feliz do que Ele? E tanto mais feliz
quanto mais se sacrificou por nós, para nos salvar! «Agora é glorificado o
Filho do Homem» (Jo 13, 31). O seu
aniquilamento na Cruz foi a causa da sua alegria suprema, pela glória que deu
ao Pai com a nossa Redenção. Mas nem aí parou a sua divina humildade: quis
ficar connosco, até ao fim dos tempos, nessa máxima «loucura de Amor» que é a
Sagrada Eucaristia: sob a aparência de um bocadinho de pão! Haverá maior
humildade do que esta: Deus, ao nosso dispor, sob a aparência de uma coisinha
de nada?
E, no entanto, nessa condição
humílima, como diz Scheeben, o Corpo de Cristo recebe a maior glorificação
possível a um ente material, porque fica dotado de qualidades espirituais –
todo em todo o pão, ao modo da alma, que está integralmente em cada ponto do
corpo – e até divinas: o dom da ubiquidade. A máxima humilhação é compensada
com a máxima exaltação.
Cristo, mesmo enquanto Homem,
«não perdeu nada» com tão grande humildade; pelo contrário. Nem perderemos nós,
se O imitarmos. Pelo contrário: assim como Ele nos conquistou e continua a
conquistar com tão manifesto amor, também nós O «conquistaremos» se formos
humildes.