TEOLOGIA E MAGISTÉRIO
O CARDEAL MERRY DEL VAL,
SECRETÁRIO DE ESTADO DE S. PIO X
Gianpaolo Romanato
Por ocasião dos 80 anos da morte do Cardeal Merry del Val, que foi Secretário de Estado de S. Pio X, temos o gosto de oferecer aos nossos leitores uma página da História da Igreja, com o artigo publicado em L’Osservatore Romano, ed. port., de 13-III-2010, cujo título é “A política da recta via”.
Pio X e Rafael Merry del Val. É difícil imaginar duas personalidades mais diversas. O primeiro nasceu na zona rural véneta, numa família muito modesta que conheceu dificuldades e provavelmente até a fome. Estudou graças a uma bolsa de estudos e transcorreu toda a vida, antes da eleição para o papado, entre pessoas simples, entre paróquias de aldeia e cúrias de província, longe da ribalta e dos lugares do poder. O segundo provinha de uma das famílias mais aristocráticas do continente, tinha recebido uma educação cosmopolita e poliglota, frequentava as embaixadas e os ambientes mais exclusivos de todas as capitais da Europa.
As suas vidas, que pareciam feitas só para divergir, cruzaram-se quase casualmente e acabaram por se entrelaçar a tal ponto que também hoje é difícil separá-las.
O encontro aconteceu durante o dramático conclave de 1903, o do veto austríaco à eleição do cardeal Mariano Rampolla del Tindaro, que no espaço de quatro dias, no sétimo escrutínio, levou ao papado, com o nome de Pio X, o quase desconhecido patriarca de Veneza, Giuseppe Sarto. Uma singular coincidência tinha feito com que o secretário do Consistorial, que era também secretário do Sagrado Colégio, e por conseguinte do conclave, Mons. Alessandro Volpini, tivesse falecido quase no mesmo momento em que morreu Leão XIII. À pressa, os cardeais escolheram como seu sucessor precisamente Merry del Val, naquele momento Presidente da Pontifícia Academia dos Nobres Eclesiásticos, elevado ao episcopado havia apenas três anos.
A escolha tinha sido feita num grupo de três nomes. Os dois candidatos excluídos eram o substituto da Secretaria de Estado Giacomo Della Chiesa, futuro Bento XV, e Pietro Gasparri, então secretário para os Assuntos eclesiásticos extraordinários. A preferência acordada ao mais jovem e ao menos titulado dos três foi interpretada como a primeira derrota da linha Rampolla, prenúncio do que haveria de acontecer no conclave.
Sobre Merry, privado do direito de voto por não ser cardeal, caiu assim a gravosa incumbência de preparar e conduzir o mais difícil conclave dos últimos dois séculos – o seu diário daqueles dias foi publicado por Luciano Trincia no volume Conclave e potere politico (Studium, 2004). Sarto conheceu-o então, teve a ocasião de o apreciar enquanto amadureciam as circunstâncias da sua eleição e, poucas horas depois de ser nomeado Papa, comunicou-lhe, deixando-o estupefacto, a decisão de o nomear pró-secretário de Estado. «Por enquanto não tenho ninguém – dissera-lhe –, permaneça comigo. Depois veremos». A designação para o papel-chave do Pontificado deste espanhol – primeiro não italiano a guiar a Secretaria de Estado – de trinta e oito anos, que poderia ter sido filho do Papa, o qual tinha sessenta e oito anos, suscitou comentários e reservas que pesaram mais de quanto se tenha dito sobre as vicissitudes sucessivas. Só depois de dois meses de prova, Pio X dissolveu as reservas e nomeou-o Secretário de Estado a 18 de Outubro, elevando-o também à púrpura cardinalícia. A partir daquele momento a vida de Merry del Val nunca mais se separou da do Pontífice.
Quem era Rafael Merry del Val, do qual recordamos o octogésimo aniversário da morte? Nascido em 1865 em Londres, onde o pai era embaixador de Espanha, cresceu entre a Inglaterra e a Bélgica, e em 1885 foi enviado para Roma pelo arcebispo de Westminster, cardeal Herbert Vaughan, a fim de completar a preparação para o sacerdócio no Pontifício Colégio Escocês. Ali iniciou uma das mais rápidas carreiras de toda a história eclesiástica. Segundo o seu biógrafo Pio Cenci, teria sido o Papa pessoalmente a impô-lo à Academia dos Nobres Eclesiásticos e a utilizá-lo para missões diplomáticas na Inglaterra, Alemanha e Áustria, ainda antes da consagração sacerdotal. Conhecia perfeitamente as principais línguas europeias, mas certamente não é suficiente a perícia linguística para justificar tanta atenção. Numa Cúria pontifícia que estava esforçadamente procurando recuperar papel e nível internacional depois do desastre de 1870, o jovem da insigne família inglesa dos Merry e da ainda mais ilustre linhagem espanhola dos del Val certamente deu provas de capacidades fora do comum para superar as etapas.
Depois da licenciatura na Gregoriana, tornou-se um dos personagens mais influentes e ouvidos da Roma pontifícia, sobretudo para os problemas que diziam respeito ao anglicanismo. O conhecimento perfeito do ambiente e da língua, as viagens frequentes para além do Canal da Mancha e a estima do cardeal Vaughan conferiram-lhe grande influência.
Investido por Leão XIII da difícil questão das ordenações anglicanas – estava-se no início, ainda incerto e hesitante, do caminho ecuménico –, levou a Santa Sé ao veredicto negativo, depois oficializado em Setembro de 1896, com a bula Apostolicae curae, da qual foi o principal redactor. Com base numa prática antiga já de trezentos anos e de uma minuciosa averiguação histórica, Leão XIII confirmava a «nulidade» das «ordenações realizadas com rito anglicano», negando com isto a sucessão apostólica desses bispos. A aproximação dos anglicanos aos católicos, que estava a decorrer há tempos, sofria assim uma interrupção, enquanto o jovem prelado se acreditava como portavoz de uma linha de austeridade doutrinal diversa, ou até alternativa, à da política de Rampolla, Secretário de Estado do Papa Pecci.
No ano seguinte realizou uma longa missão no Canadá, como delegado apostólico.
Debatida entre as opostas tentações do isolamento e da cedência, a jovem catolicidade local tinha pedido ajuda a Roma. Ali Merry moveu-se com equilíbrio, sobretudo em relação ao problema das escolas católicas em Manitoba, e por isto obteve público reconhecimento do Papa na encíclica Affari vos (Dezembro de 1897). Com palavras totalmente invulgares num documento oficial, Leão XIII escreveu que «o nosso Delegado apostólico cumpriu perfeita e fielmente aquilo para o que o tínhamos enviado». Tendo regressado a Roma foi designado para a chefia da Academia dos Nobres Eclesiásticos e nomeado bispo. A sua rapidíssima carreira devia-se a uma sólida preparação histórico-jurídica, a uma inata capacidade de se relacionar com quem quer que fosse, à «rapidez» – como dirá depois Bento XV – com que resolvia os problemas. Mas todos sabiam que o eficaz diplomático era um sacerdote de grande piedade, com costumes monásticos, e uma austera, ascética disciplina de vida.
Em 1903, como se recordou anteriormente, aconteceu o salto decisivo para o vértice do organograma vaticano, favorecido primeiro pela morte imprevista de monsenhor Alessandro Volpini – ainda não tinha sessenta anos – e depois pela escolha inesperada do recém-eleito Pio X. Para o novo Papa, eleito precisamente para mitigar a excessiva exposição política da Santa Sé que se verificou durante a gestão Rampolla, Merry del Val, notoriamente alheio àquela gestão, parecia ser o homem adequado para imprimir a mudança. Movia-se com facilidade no mundo diplomático, dominava os problemas da política internacional, conhecia perfeitamente a Cúria romana. Em síntese, conhecia tudo aquilo de que o Papa era carente. Nomeando-o Secretário de Estado, Pio X contava com tudo isto. Mas contava também com a sua jovem idade e com a sua iluminada devoção ao papado: seria um fiel colaborador que jamais se lhe teria contraposto. Mas, certamente, Pio X teve em consideração também outra qualidade de Merry del Val: a sua vida de piedade. O elogio que Sarto lhe dirigiu a 11 de Novembro de 1903, dia da imposição do barrete vermelho, é tão fora do comum, até na linguagem, que merece ser transcrito totalmente: «O bom perfume de Cristo, senhor cardeal, que difundiu em todos os lugares, também na sua temporária habitação, e as numerosas obras de caridade, às quais se dedicou continuamente nos ministérios sacerdotais, especialmente nesta nossa cidade de Roma, granjearam-lhe, com a admiração, a estima universal». A apreciação positiva do Pontífice, mais do que às capacidades políticas do colaborador, dirigia-se ao seu mundo moral, às obras de caridade entre os jovens do bairro de Trastevere nas quais se empenhava sem se poupar. Um Papa essencialmente piedoso escolheu um Secretário de Estado com as suas mesmas características.
As vicissitudes do pontificado de Pio X são conhecidas. As relações com os Estados deterioraram-se um pouco em toda a parte, até chegar a rupturas declaradas. O caso mais conhecido é o da França, onde em Dezembro de 1905 foi votada a lei de separação entre Igreja e Estado. Seis anos mais tarde foi a vez de Portugal, que aprovou uma lei ainda mais brutal. Tensões análogas verificaram-se em vários países da América Latina. O Papa não fez muito para modificar o curso dos acontecimentos. Protestou, escreveu encíclicas muito fortes, mas absteve-se de tentar vias diplomáticas.
No caso francês, a lei previa que as chamadas associações culturais, das quais era excluída a hierarquia eclesiástica, gerissem as propriedades da Igreja, tornando-se um pólo alternativo aos bispos. O objectivo de desfazer a constituição hierárquica da Igreja era evidente, mesmo se nem todos o tinham apercebido. O Papa centrou perfeitamente o nó do problema e opôs una clara rejeição. Foi um verdadeiro legal suicide, como foi dito, dado que a Igreja da França, obrigada por Roma a não aceitar a lei – o Pontífice escreveu em menos de um ano, entre 1906 e 1907, três encíclicas dedicadas ao caso francês –, perdeu a personalidade jurídica e com ela todo o seu património, começando pelas igrejas onde se realizavam diariamente as funções religiosas. Mas reconquistou a plena liberdade e o controle das nomeações episcopais, até àquele momento delegado no Estado, em virtude da concordata napoleónica. A escolha de Pio X – entre o «bem» e os «bens» da Igreja escolheu o primeiro, dissera o Papa –, que obterá postumamente o aplauso de Aristide Briand, o inspirador da lei – «o Papa foi o único que viu claramente», escreveu – tinha cancelado de uma só vez três séculos de galicanismo, de Igreja nacional, reconduzindo a catolicidade francesa, também disciplinarmente, à plena fidelidade romana.
Foi uma mudança fundamental – «acontecimento doloroso e traumatizante», definiu-a João Paulo II na carta aos bispos franceses, escrita por ocasião do centenário da lei – que desconcertou os contemporâneos e continua a dividir os historiadores. Foi esta a ocasião que fez sobressair aquele idealismo anti-temporalista; como foi definido que, segundo o parecer de vários estudiosos, seria o aspecto deveras revolucionário do pontificado, a grande novidade na relação entre a Igreja e o mundo que sobressaiu no decénio de Pio X e de Merry del Val.
Com Pio X termina toda uma época na história da Igreja, a das interferências com a política, dos enlaces diplomáticos, dos relacionamentos tardios entre tronos e altares, dos «bispos em cilindro» e dos «cardeais de corte», das contraposições em relação a alguns Estados e das concessões a outros. Diversamente do seu predecessor, nunca fez «política estrangeira», jamais tentou enfraquecer a nível internacional os países que se demonstravam contrários à Igreja, nunca procurou explorar em benefício próprio as rivalidades, os interesses e as alianças das várias nações. E esta linha, que ainda não obteve dos historiadores a atenção que merece, não era um isolamento táctico mas uma clara escolha estratégica, como certa vez disse ao futuro cardeal Nicola Canali, então jovem minutante de cúria: «O senhor é jovem, mas recorde-se sempre que a política da Igreja é não fazer política e caminhar sempre pela recta via».
Merry del Val coadjuvou leal e convictamente esta política, assim como as opções simples de radical renovação da Igreja, de supressão do direito de veto, de reforma da Cúria, de codificação do direito canónico. A reorganização da Cúria romana, aprovada em 1908, dizia directamente respeito às suas competências, que foram ampliadas, no âmbito de um desígnio de governo no qual a Secretaria de Estado era apenas o penúltimo das cinco repartições vaticanas. O coração da Igreja de Pio X não era a Secretaria de Estado, como acontecerá com a reforma de Paulo VI, sessenta anos mais tarde. O coração era representado pelas onze congregações, estando acima de todas o Santo Oficio. Talvez seja esta a razão pela qual o papel de Merry coincide quase até se confundir com o do Papa, ao contrário do dos seus predecessores e sucessores. Fazendo pouca ou nenhuma política e procurando governar e renovar a Igreja, Pio X tirou à Secretaria de Estado muito daquele espaço que a tornava um actor autónomo e fortaleceu o seu vínculo com o próprio papado.
Este vínculo tornou-se ainda mais estreito ao longo da vicissitude modernista, que aos olhos dos historiadores até agora é o verdadeiro punctum dolens do pontificado de Giuseppe Sarto. Sobre este ponto escreveu-se muito, e um dos aspectos até agora por resolver refere-se precisamente à obra do Secretário de Estado. Mas que Merry tenha sido protagonista ou co-primário, executor ou inspirador, não parece um elemento decisivo de juízo. É decisivo o facto de que foi plenamente partícipe da linha anti-modernista do Papa, convicto defensor da necessidade de deter as instâncias de renovação nas quais ambos viam o risco iminente de uma catastrófica crise de fé.
Era inevitável que um Secretário de Estado tão estreitamente identificado com o Pontífice que tinha servido, não fosse confirmado pelo seu sucessor. Logo que foi eleito Papa, a 3 de Setembro de 1914, Bento XV nomeou, de facto, primeiro o cardeal Domenico Ferrata, que faleceu quase imediatamente, e depois Pietro Gasparri. Encontramos assim na chefia da Igreja os dois bispos que tinham sido superados por Merry del Val no conclave de 1903. Para o antigo Secretário de Estado, os dezasseis anos que ainda viveu talvez tenham sido um período difícil. Recebeu de Bento XV o mesmo tratamento que Pio X tinha, destinado dez anos antes a Rampolla: tornou-se secretário do Santo Oficio – a Prefeitura desta Congregação era então prerrogativa do Pontífice –, função que conservou até à morte imprevista, a 26 de Fevereiro de 1930. Em relação a Pio X conservou uma devoção ilimitada: iniciou a petição que inaugurou a sua canonização; no dia 20 de cada mês, dia da morte do Papa, celebrava uma missa em seu sufrágio; pediu para ser sepultado «o mais próximo possível do meu amadíssimo Pai e Pontífice Pio X». Mas o seu tempo já tinha chegado ao ocaso, mesmo se em 1953, durante o pontificado de Pio XII, que tinha iniciado a carreira precisamente na sua dependência, foi iniciado também para ele o processo canónico, em coincidência com a glorificação de Pio X, proclamado beato em 1951 e santo em 1954.